"Referindo-se
ao vinho, aparecem exemplos de significados como, 'solo apto
à produção de um vinho', 'terroir produzindo
um grand cru', 'vinho que possui um gosto de terroir', 'um
gosto particular que resulta da natureza do solo onde a videira
é cultivada'".
A visão dos parreirais encanta ainda mais com a beleza
de uma das paisagens mais marcantes do Brasil, como a da Serra
Gaúcha. De lá, elas vêm em cachos e mais
cachos, algumas com nomes bem exóticos como as francesas
Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Gewurztraminer, Merlot e as
italianas Prosecco, Riesling Itálico e Moscato Giallo.
Ao final, depois de um longo laborioso processo, elas se constituem
na safra de vinho brasileira que cada vez mais ganha seu espaço
perante os grandes polos como a Argentina e o Chile. Três
personagens, contam um pouco da história da elaboração
dos vinhos brasileiros e os planos para tornar a atividade
vitivinícola brasileira tão desejada quanto
à safra do mais famoso espumante francês, o qual
requereu o nome só para si - o Champagne.
Herança familiar
Quando as primeiras famílias vindas da Itália
demarcaram seus territórios no Rio Grande do Sul, trouxeram
consigo, além da bagagem, o conhecimento de práticas
agrícolas específicos da região onde
moravam. O cultivo das videiras foi um deles - e se adaptou
muito bem por aquelas bandas, como conta o enólogo
e diretor técnico da Vinícola Salton, Lucindo
Copat. Ele próprio aprendera com os pais, tios e avós
a estima pela vitivinicultura. "A atividade inicialmente
era muito empírica, e o Brasil era muito desconhecedor
da atividade, porque nossos imigrantes detinham uma tradição
mais prática do que teórica no cultivo da uva.
Ou seja, era um trabalho que era passado de pai para filho,
uma herança familiar".
Copat vivenciou isso - não sabia com precisão
o que fazia e porque fazia, mas tinha adquirido o conhecimento
de produção da uva e de elaboração
de vinho. Foi a partir dessa história que ele revolveu
que gostaria de se aprofundar mais sobre o tema e se profissionalizar
nesse campo. Em meados de 1969 ele ingressou na Escola de
Viticultura e Enologia de Bento Gonçalves (RS) e no
ano de 1972 já tinha o diploma de conclusão
e novas propostas de estudo na Argentina, na Alemanha, na
Espanha e na França. "Tenho uma experiência
de 29 anos na área, dos quais, 20 de Salton. Tive a
felicidade de viver toda a transformação da
viticultura brasileira e ainda ter tido a sorte de ter estudado
uma enologia que, na verdade, nem eu sabia o que era",
diz Copat.
O termo refere-se à arte de transformação
da fruta uva no vinho, ou como diria o dicionário Houaiss,
a ciência que trata do vinho, da técnica de produzi-lo
e de sua conservação. De fato, no início
o processo tinha de ser artístico mesmo pelo fato de
o País não deter toda a tecnologia necessária
para a elaboração da bebida. Copat lembrara
que o maquinário tinha de ser importado e era muito
caro, no final das contas, muitos desses equipamentos tinham
de ser feitos por aqui mesmo, para viabilizar a indústria
nacional. "O resultado era um vinho que, para aquela
época, era bom".
Ao longo dessa trajetória o próprio governo
buscou formas de incentivar a indústria nacional, e
na década de 1980 as coisas já davam sinais
de melhora com a facilidade do maquinário necessário.
No entanto, agora a limitação seria imposta
pela própria viticultura - área na qual estão
implícitas as questões agronômicas da
atividade. E a pressão crescia com a entrada de multinacionais
na área de elaboração de vinhos aliada
a abertura de mercado, o qual popularizava o produto importado
e mais barato.
"Essa modificação da viticultura nacional
ocorreu em meados da década de 1990", conta o
enólogo. "Tínhamos o acesso a tecnologia
para a indústria, mas ainda não tínhamos
uma viticultura à altura de outros centros de referência,
porque a reação agrícola é mais
lenta. Um processo que requer mais tempo, no qual são
estabelecidos o plantio, os testes com as variedades e os
cavalos adaptados. Foi a partir de 1999 e 2000, que nos voltamos
para uma viticultura nacional e de precisão",
afirma o especialista.
De lá pra cá, nem tudo também foram flores
somente. Os problemas se relacionavam especialmente no descompasso
de oferta e demanda - muito vinho para pouco consumo. "Ultimamente
pode-se dizer que estamos numa fase áurea. Temos até
quebrado o paradigma de que o vinho importado é melhor
que o vinho brasileiro".
Tecnologia e suavidade
Parreirais bem conduzidos, devidamente tratados e manejados
garantiram a safra ideal para a produção de
suco, vinho, frisante ou espumante que mais tem atraído
do consumidor. O incremento tecnológico através
do desempenho de profissionais mais capacitados na atividade
e o melhor desenvolvimento das práticas para a obtenção
de uma bebida diferenciada é o que tem impulsionado
a indústria. "Isso tem transformado os nossos
vinhedos em verdadeiros jardins, com variedades adaptados
ao clima tropical brasileiro, com porta-enxerto e clones específicos
que, futuramente, vão render vinhos extremamente espetaculares
com preços altamente competitivos", prevê
o especialista.
Um dos segredos da produção está justamente
na suavidade do movimento como um todo durante o processo.
O primeiro passo está na retirada do fruto o mais intacto
possível, depois o esmagamento mecânico das bagas,
que tenta copiar com perfeição o mesmo processo
que era feito com os pés, antigamente. De acordo com
o enólogo, a técnica humana é senão
a melhor forma que existe, pois é bastante suave.
"A partir dessa suavidade, desde a elaboração,
com a própria uva, no envase, sem agredi-la - assim
deve se basear todo o processo produtivo. Cada vez que machucamos
o fruto ou movimentamos bruscamente o vinho, perdemos qualidade.
Temos sim de fazer com rapidez, mas sem perder a suavidade
dos movimentos. Está aí o grande segredo do
vinho", revela Copat.
Indústria centenária
É justamente por essa filosofia - objetiva e suave
- que a Vínicola Salton caminha atualmente. Ela nasceu
em 1910, em Bento Gonçalves a partir da parceria dos
irmãos Paulo, José, Ângelo, João,
Cezar, Luiz e Antônio, filhos do italiano Antonio Domenico,
que chegara ao País em 1878. "Paulo Salton fez
com que a vinícola se desdobrasse em vários
ramos de trabalho", conta o neto dele e atual diretor-presidente
da empresa, Daniel Salton. "Tínhamos serraria,
trabalhávamos com madeira, armazéns de secos
e molhados. Meu avô foi um centralizador de mercado.
Em 1948 foi aberta uma filial da empresa em Santos, próximo
ao porto, isso diminuiu os atravessadores e assim podíamos
fazer uma venda mais direta a esse grande centro consumidor",
ressalta o empresário.
O passar dos anos não foram os mais fáceis.
Crises econômicas, perdas familiares, as duas grandes
guerras mundiais e problemas estruturais da própria
vinícola foram moldando os negócios da família.
"A segunda geração deixou cair a 'peteca'.
Meu pai, por exemplo, teve de largar os estudos com a morte
de meu avô para se dedicar à empresa, além
de cuidar da família. Eles não souberam administrar
a empresa de forma a rejuvenescê-la em termos de equipamentos.
Quando eu passara a fazer parte da vinícola, os equipamentos
estavam ultrapassados e os grupos de trabalho mal se falavam".
Por incrível que pareça, não foi o vinho
que segurou as pontas naqueles anos todos, mas sim um conhaque
- Conhaque Presidente, que até hoje é uma das
marcas mais fortes do grupo e que chega a ter uma participação
do mercado de mais de 30%.
Já na terceira geração, Ângelo
Salton Neto, primo de Daniel, tomara então as rédeas
do negócio em 1981 e começou a promover as melhorias
necessárias ao empreendimento. Naquela época
Daniel já era diretor comercial da empresa. Foi feita
a contratação do enólogo, Copat, que
deu uma diretriz mais objetiva ao negócio e assim,
aos poucos, formaram uma boa equipe de trabalho aliado ao
incremento do sistema produtivo e valorização
da marca, Salton. A partir daí começou-se a
pensar na elaboração dos vinhos finos.
Com a morte de Ângelo, em 10 de fevereiro de 2009, Daniel
passaria ao cargo dele para dar continuidade ao trabalho.
Ele teve de se adaptar para conduzir o barco da mesma forma
que o primo vinha conduzindo. "Já tive muita briga
dentro da empresa, tinha a fama de bravo, de duro", relembra.
"Os funcionários até comentavam, 'olha,
cuidado com o Daniel que ele é muito bravo'. De lá
pra cá, mudei muito, no dia a dia, ganhando experiência
e o feeling do negócio".
De dois anos pra cá, a empresa tem experimentado ainda
mais transformações no foco estratégico,
no gerenciamento de crises, na identificação
de oportunidades, na área desenvolvimento sustentável
e, especialmente, na qualificação de pessoal
e de processos. Hoje a marca já tem referência
no País e busca o espaço internacional no mercado
americano e canadense.
Atualmente o grupo possui três projetos próprios
de produção. O primeiro em Bento Gonçalves,
outro em Bagé, e o terceiro em Santana do Livramento,
iniciado em 1999, que em 2013 contará com uma área
de produção de 108 ha - a intensão do
grupo é chegar a uma área de parreirais de até
450 ha. O empreendimento ainda conta com o sistema de fornecimento
de uvas de pequenos e médios produtores dessas regiões,
que totalizam 630 fornecedores em dois mil ha. Disso aí,
200 ha em Bagé e 130 ha em Santana do Livramento, aproximadamente.
Este ano a safra deve atingir 17 milhões de quilos
(kg) - 500 mil de produção própria. Ano
passado o montante foi de 24 milhões. A queda se deveu
a uma redução na quantidade de uva pedida aos
fornecedores por conta do estoque alto feito na safra de 2010/2011.
Ano que vem, com a área de Santana do Livramento, a
Salton colherá 750 mil de kg, com meta a chegar a 1,5
milhão de kg, a partir da expansão da área
pretendida.
À moda portuguesa
Já em outras bandas do País, exatamente em São
Roque (SP), outro personagem iniciara na década de
1930 uma produção de uvas e vinhos além
das tradicionais de culturas de subsistência como o
feijão, o milho, a batata e algumas lavouras de serra
como a própria pera e o marmelo. O descendente de imigrantes
portugueses, Benedito Moraes de Góes, ou seu Nhô
Dito Góes, juntamente com seu irmão, Firmino
de Góes, foi influenciado pela cultura italiana que
então chegara à região para trabalhar
na lavoura cafeeira. Sem o êxito no café, o jeito
foi desenvolver a cultura da uva que se adaptaria muito bem
àquela região de clima com muita geada e um
inverno bastante rigoroso e seco. "Foi aí então
que os remanescentes de origem portuguesa passaram a atuar
nesse tipo de cultura", diz Cláudio Góes,
bisneto de seu Nhô Dito, e diretor-presidente da Vínicola
Góes. "Ele começara a fazer o vinho de
uma forma bem artesanal, em pouca quantidade. Uma passagem
interessante descreve meu bisavô indo levar uva para
o Mercado Municipal de São Paulo em carros com tropa
de muares, burros, para o atendimento ao mercado de uva de
mesa da capital".
Assim como a vitivinicultura gaúcha, a paulista igualmente
nascia a partir da transmissão de herança familiar,
muito baseado no trabalho das famílias italianas. "Teve
até um professor de enologia que se estabeleceu na
cidade e que pôde ministrar alguns cursos para eles.
O próprio governo do Estado ajudou a fomentar a atividade",
destaca Góes.
Já em 1946, os filhos de seu Benedito, Gumercindo e
Roque de Góes, fundaram a Vinícola Palmares,
consolidando uma marca no mercado na década de 1960.
"Depois disso com o aumento da família, eles entraram
em comum acordo para dividir a sociedade", conta Góes.
"Roque ficou com a marca Palmares e Gumercindo com a
Góes [que iniciara oficialmente a produção
em 1963] - empresa na qual já estamos na quarta geração
como produtores de vinho e na terceira geração
pela instituição do negócio próprio
de meu avô, Gumercindo".
O tempo fez com que a atividade prosperasse e a própria
região se dedicasse mais ao vinho - atualmente essa
é a notoriedade da cidade paulista. Com o advento tecnológico
e a melhor apropriação do conhecimento técnico,
a vitivinicultura paulista foi ganhando mais espaço
e a empresa familiar se especializou. Hoje há engenheiros
agrônomos, enólogo, engenheiro químico
que são membros da família.
Altos e baixos
Por volta da década de 1980, a produção
agrícola sofreu uma queda muito grande, em função
do êxodo rural e da sobrevalorização das
terras impulsionada pela especulação imobiliária.
Em termos de rentabilidade, o melhor então seria a
venda de áreas do que manejar uma lavoura que não
renderia o mesmo nos negócios. Atualmente na região
há 15 vinícolas remanescentes, reunidas através
de um sindicato na busca de saídas para a melhoria
da atividade. "Temos então trabalhado desde 2001
no sentido de recuperar o setor. Por isso fizemos algumas
áreas de pesquisas com novas variedades. Além
das tradicionais que estão em produção
no País, há também as híbridas
desenvolvidas pela Embrapa que já estão adaptadas
ao clima brasileiro, como Lorena, Violeta, Margot e Carmem.
Estas cultivares buscam uma qualidade diante das dificuldades
e obstáculos de um clima tropical que o Brasil oferece",
pondera o produtor.
Aos poucos, os aspectos que pareciam limitar a atividade,
deram oportunidade para que a empresa e a comunidade vitivinícola
de São Roque vislumbrassem mais a área através
do incentivo à mão de obra e à lavoura,
através de cursos profissionalizantes, planejamento
de abertura de produção em novas áreas,
fomento em polos tradicionais de uva no Rio Grande do Sul,
além do estímulo a novos produtos a base de
uva.
No campo de fomento à mão de obra, o incentivo
veio através do Instituto Federal de São Paulo,
que oferece há três anos um curso de agroindústria
e agronegócios. Para 2013, já está praticamente
certo o início do curso superior em Enologia.
Na questão de expansão de parreirais no Estado
de São Paulo, os produtores tanto de São Roque
como de outros municípios vitivinícolas se congregaram
politicamente e agora estudam juntos possíveis áreas
que podem viabilizar a produção. "Regiões
de Jundiaí, Louveira, Valinhos e São Carlos,
por exemplo, estão sendo estudadas. Neste último,
já possui alguns testes sendo feitos lá. Em
Jales também é possível haver a implantação
da atividade numa escala viável", assegura o empresário.
Outro foco está na força do próprio enoturismo,
que traz ganhos para a propriedade rural. De acordo com Góes,
a atração à cultura do vinho e seu processo
de elaboração possui um apelo muito forte e
ajuda a cidade como um todo. As festividades, a época
de colheita e o esmagamento com os pés podem sem experimentados
pelos visitantes. Isso tem atraído e muito os turistas,
daí, beneficiam-se também outras atividades
artesanais na parte de compotas, doces, queijos, entre outros.
Isso, sem contar também o retorno da rede hoteleira
e demais serviços de lazer na região.
Mais produtos e investimentos
Oferecer de mais produtos e derivados da uva é o desafio
para manter o setor aquecido. "Se considerarmos que o
Brasil é um País tropical, de clima muito quente,
com muito calor, muita praia e muito consumo de cerveja, precisávamos
também oferecer algo que pudesse ir nessa linha. Nesse
sentido desenvolvemos o Grapecool". A bebida é
popularmente conhecida como o chopp de vinho, possui baixa
graduação alcoólica e é obtida
a base de vinho gaseificado. A ideia é justamente apresentar
ao público consumidor uma alternativa barata e que
combine com o clima brasileiro. "Isso serve de estímulo
para se conhecer mais produtos a base de uva, e aí,
temos uma porta de entrada para o vinho. Àqueles que
já tomam vinho de mesa, oferecemos o tipo demi-seco
(ou meio-seco), com baixa graduação de açúcar,
isso atrairá ao consumo do vinho de maior qualificação",
ressalta Góes.
Todo esse estímulo já tem rendido um aumento
nas vendas em 10% ao ano, e os planos é poder crescer
a atividade da própria vinícola, especialmente
na produção do suco de uva. O plano, em médio
e curto prazos, está calcado na continuidade de estudos
com as variedades europeias, no aumento na área e instalações
de atendimento ao turista, com salas de cursos de degustação,
por exemplo. Em médio e longo prazos, a intensão
é ter extensos parreirais na região do sudoeste
paulista, com cerca de 300 ha, em Buri (SP), onde as áreas
podem ser facilmente mecanizáveis.
Atualmente 80% da produção da Vinícola
Góes é originada de uma unidade da empresa em
Flores da Cunha (RS). Ao todo, as áreas próprias
em São Paulo e Rio Grande do Sul somam 100 ha. Grande
parte das uvas é fornecida por colonos gaúchos,
que somada à produção própria
rendem em média oito milhões de kg por ano -
montante capaz de render seis milhões de litros de
vinho e suco anualmente.
Calendário vitícola
Junho e julho. No inverno é feito o manejo de adubação
da videira. É o momento que a planta perde as folhas
e precisará de uma boa alimentação para
poder hibernar e desenvolver as raízes.
Agosto e setembro. Nesse período tem de ser feita a
prática de poda, muito bem conduzida. Isso fará
com que a planta produza bons frutos. Além disso, fazem-se
necessários os tratamentos fitossanitários adequados.
Setembro a dezembro. Na primavera é período
no qual a videira inicia seu movimento interno, ou seja, a
seiva da planta começa a circular. Com essa circulação,
ela começa a emitir as folhas e brotar. Depois disso
tem a floração e a formação dos
frutos.
Janeiro a março. O ponto ideal de colheita inicia-se.
Para cada variedade há um manejo específico,
bem como uma época certa de colheita, a qual tem de
se basear na madureza enológica, ou a madureza propícia
para a elaboração do vinho. Do início
da floração ao início da colheita, o
período chega a 100 dias, aproximadamente.
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