Aprovada em 2005, a Lei 11.105 (Lei de Biossegurança) está em vigor,
foi regulamentada pelo Decreto 5.591/05 e atualmente o sistema de biossegurança
vem funcionado com maior regularidade.
Com a publicação
da nova lei e início do funcionamento da Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança CTNBio, algumas ações judiciais
foram propostas mas nenhuma, até o momento, com argumento e fundamentação
suficientes para comprometer o funcionamento do sistema reformulado.
Das
ações judiciais propostas, a Ação Direta de Inconstitucionalidade
- ADI 3526 de autoria do Procurador-Geral da República, que contesta as
competências atribuídas pela Lei 11.105/05 à CTNBio é
a que mais causa preocupação. Embora se trate de uma ação
que, pelos fundamentos frágeis que a sustenta, tem limitado poder de persuasão
e certamente não convencerá os ministros do Supremo Tribunal Federal
STF a declararem inconstitucionais as competências atribuídas
à CTNBio, essa ADI incomoda mais pelo fato de minimizar a segurança
jurídica que se esperava oferecer ao setor com a publicação
da nova lei e, também, por servir de fonte de argumentação
para setores da sociedade que são ideologicamente contrários ao
desenvolvimento e uso de produtos oriundos da biotecnologia moderna.
O
ministro relator da ADI 3526, Celso de Mello, em despacho ordinário, determinou
que fosse ouvido o eminente Procurador-Geral da República para os fins
e efeitos do artigo 12 da Lei 9.868/99. A referida lei dispõe sobre o processo
e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação
declaratória de constitucionalidade perante o STF, e seu artigo 12 estabelece
que: Havendo pedido de medida cautelar, o relator, em face da relevância
da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança
jurídica, poderá, após a prestação das informações,
no prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União
e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias,
submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar
definitivamente a ação.
Embora o artigo 12 da Lei
9.868/99 fale em prazo de 5 dias para a manifestação do Procurador-Geral
da República, a ADI 3526 está com vista ao Procurador desde o dia
24/05/2006, mais de 20 meses portanto, e até o momento nenhuma manifestação
chegou ao STF. Neste caso, o atraso no julgamento da ADI não é provocado
pelo STF, mas, curiosamente, pelo autor da ação.
Todavia,
a ADI está em fase final de tramitação e seguramente será
julgada neste ano de 2008, decisão que certamente será um divisor
de águas no processo de introdução da biotecnologia moderna
no sistema produtivo nacional.
O reconhecimento da constitucionalidade
das competências atribuídas à CTNBio por parte dos poderes
Legislativo e Executivo foi manifestado, respectivamente, no momento da aprovação
e da sanção da Lei de Biossegurança.
No dia 12 de
fevereiro de 2008, o Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS se reuniu
e referendou a aprovação de dois eventos de milho geneticamente
modificados, considerados seguros pela CTNBio, ação que pode ser
considerada a mais consistente manifestação do Poder Executivo no
sentido de admitir a introdução de produtos transgênicos no
sistema produtivo nacional.
Seguramente este é o melhor cenário
para a biotecnologia moderna no Brasil desde 1995, e caso o STF julgue improcedente
a ADI que contesta a constitucionalidade de alguns pontos da Lei 11.105/05, teremos
uma legislação e um sistema de biossegurança definitivamente
consolidados nos âmbitos jurídico e administrativo. O
Brasil precisa do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança? Efetivamente
não. No Brasil, o desenvolvimento e o uso de biotecnologias oriundas da
engenharia genética são atividades regulamentadas desde 1995 e o
sistema doméstico de biossegurança sempre funcionou com muita eficiência.
Tema importante e atual, as negociações relacionadas à complementação
do texto do Protocolo de Cartagena merecem plena atenção do governo
brasileiro e do setor privado interessado, não pelos benefícios
que poderá trazer ao país mas pelo potencial que tem para criar
dificuldades para a introdução da biotecnologia moderna no sistema
produtivo brasileiro, especialmente no sistema produtivo agrícola.
O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança da Convenção
sobre Diversidade Biológica, celebrado em Montreal em 29/01/2000, entrou
em vigor no âmbito internacional em 11/09/2003, foi aprovado pelo Congresso
Nacional no dia 21/11/2003, recebeu a adesão do Brasil em 24/11/2003, entrou
em vigor para o Brasil no dia 22/02/2004 e foi promulgado pelo Presidente da República
por meio do Decreto nº 5.705 em 16/02/2006. Este último ato, do qual
são inerentes a promulgação do documento, a publicação
oficial do texto e a executoriedade do tratado que passa a obrigar no plano do
direito positivo doméstico, concluiu o procedimento de incorporação
dos tratados internacionais.
O artigo 1º do Decreto nº 5.705/06
determina que o Protocolo deve ser executado e cumprido inteiramente, foi publicado
no Diário Oficial da União no dia 17 de fevereiro de 2006 e entrou
em vigor na data de sua publicação.
Verifica-se, portanto,
que o Protocolo de Cartagena cumpriu o itinerário procedimental de incorporação
de tratados que pode lhe conferir, no âmbito interno, hierarquia equivalente
à lei ordinária. Entretanto, a aplicação plena do
Protocolo ao sistema legal brasileiro não se deu de forma automática
e não pode ser exigida na atualidade pelo fato de que seu texto não
é autoaplicável. Falta-lhe objeto e procedimento claramente definidos
e possibilidade de ser aplicado judicialmente em um caso concreto. Seu texto depende
de complementações que quando vierem, dependendo da forma e alcance,
poderão gerar conflito com a Lei de Biossegurança nacional que a
ele é precedente.
O Protocolo, de acordo com seu artigo 4º,
aplicar-se-á ao movimento transfronteiriço, ao trânsito, à
manipulação e à utilização de todos os organismos
vivos modificados que possam ter efeitos adversos na conservação
e no uso sustentável da diversidade biológica, levando também
em conta os riscos para a saúde humana.
A Lei nº 11.105/05
(Lei de Biossegurança), de acordo com seu artigo 1º, estabelece normas
de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção,
o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte,
a transferência, a importação, a exportação,
o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação
no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados OGM
e seus derivados.
Uma análise comparativa dos artigos acima mencionados
deixa claro que o âmbito de aplicação do Protocolo se sobrepõe
ao da Lei de Biossegurança.
Dessa forma, caso o texto do Protocolo
de Cartagena seja complementado de forma exaustiva ao ponto de conceder à
pessoa um direito claro, aplicável ao caso concreto e exigível perante
um juiz , estarão estabelecidas as condições para gerar conflito
com a lei precedente, isto é, com a Lei de Biossegurança. Cabe lembrar
que para solucionar conflito entre normas que se encontram no mesmo patamar hierárquico,
o princípio que assegura a revogação de uma lei por outra
que a suceda no tempo é tradicionalmente usado na história jurídica.
A Lei de Biossegurança é de 2005 e o Decreto que promulgou o Protocolo
é de 2006.
Embora o texto do Protocolo assegure que nele nada será
interpretado de modo a restringir o direito de uma Parte de adotar medidas que
sejam mais rigorosas para a conservação e o uso sustentável
da diversidade biológica que as previstas no Protocolo, desde que essas
medidas sejam compatíveis com o objetivo e as disposições
do documento e estejam de acordo com as obrigações dessa Parte no
âmbito do direito internacional, cabe observar que, caso o detalhamento
das normas do Protocolo sirva para construir um sistema burocrático e excessivamente
rigoroso, o Brasil muito poderá ser prejudicado, visto ser um grande exportador
de grãos e a observância de normas complexas poderá elevar
o custo do produto exportado e desestimular o comércio de produtos oriundos
da biotecnologia moderna.
A preocupação com a possibilidade
de detalhamento exaustivo da redação do Protocolo tem origem na
parte preliminar do documento, onde um parágrafo chama a atenção
para o fato de afirmar que no processo de elaboração do Protocolo,
levaram-se em consideração os meios limitados de muitos países,
especialmente os países em desenvolvimento, para fazer frente à
natureza e dimensão dos riscos conhecidos e potenciais associados aos organismos
vivos modificados. Essa consideração feita no preâmbulo do
Protocolo serve de base para aqueles que defendem a idéia de se ter uma
lei de biossegurança internacional, da qual os países que não
tem um sistema de biossegurança doméstico possam lançar mão.
O que, efetivamente, não é o caso do Brasil.
Diante da situação
exposta, resta claro que o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança,
para o Brasil, é um tratado internacional que poderá mais prejudicar
que contribuir. Em outras palavras, o governo errou ao ratificar o tratado em
questão e caso não defenda que a construção de sua
complementação se dê na forma de estabelecimento de princípios
e diretrizes para os Estados Partes se basearem no momento da construção
de suas normas domésticas, errará novamente. Reginaldo
Minaré Advogado e Diretor Jurídico da ANBio |