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Lei de biossegurança: a um passo da consolidação

Primeiro cabe esclarecer que o desenvolvimento e uso de biotecnologias oriundas da engenharia genética nunca foram atividades proibidas por lei no Brasil, mas sim regulamentadas desde 1995 (Lei nº 8.974/95).

Entretanto, mesmo não sendo atividades proibidas, ações judiciais que questionaram a legalidade e a constitucionalidade da Lei 8.974/95 resultaram em decisões que dificultaram sobremaneira o desenvolvimento e a introdução de produtos da biotecnologia moderna no sistema produtivo nacional, especialmente na agricultura.

Procurando sanar os problemas de sistematização entre a Lei de Biossegurança e as legislações do meio ambiente, saúde e agrotóxicos, o governo federal propôs a elaboração de uma nova lei, que reformulou o sistema de biossegurança e melhorou significativamente sua sistematização com as legislações acima mencionadas.

Aprovada em 2005, a Lei 11.105 (Lei de Biossegurança) está em vigor, foi regulamentada pelo Decreto 5.591/05 e atualmente o sistema de biossegurança vem funcionado com maior regularidade.

Com a publicação da nova lei e início do funcionamento da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, algumas ações judiciais foram propostas mas nenhuma, até o momento, com argumento e fundamentação suficientes para comprometer o funcionamento do sistema reformulado.

Das ações judiciais propostas, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 3526 de autoria do Procurador-Geral da República, que contesta as competências atribuídas pela Lei 11.105/05 à CTNBio é a que mais causa preocupação. Embora se trate de uma ação que, pelos fundamentos frágeis que a sustenta, tem limitado poder de persuasão e certamente não convencerá os ministros do Supremo Tribunal Federal – STF a declararem inconstitucionais as competências atribuídas à CTNBio, essa ADI incomoda mais pelo fato de minimizar a segurança jurídica que se esperava oferecer ao setor com a publicação da nova lei e, também, por servir de fonte de argumentação para setores da sociedade que são ideologicamente contrários ao desenvolvimento e uso de produtos oriundos da biotecnologia moderna.

O ministro relator da ADI 3526, Celso de Mello, em despacho ordinário, determinou que fosse ouvido o eminente Procurador-Geral da República para os fins e efeitos do artigo 12 da Lei 9.868/99. A referida lei dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF, e seu artigo 12 estabelece que: “Havendo pedido de medida cautelar, o relator, em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação”.

Embora o artigo 12 da Lei 9.868/99 fale em prazo de 5 dias para a manifestação do Procurador-Geral da República, a ADI 3526 está com vista ao Procurador desde o dia 24/05/2006, mais de 20 meses portanto, e até o momento nenhuma manifestação chegou ao STF. Neste caso, o atraso no julgamento da ADI não é provocado pelo STF, mas, curiosamente, pelo autor da ação.

Todavia, a ADI está em fase final de tramitação e seguramente será julgada neste ano de 2008, decisão que certamente será um divisor de águas no processo de introdução da biotecnologia moderna no sistema produtivo nacional.

O reconhecimento da constitucionalidade das competências atribuídas à CTNBio por parte dos poderes Legislativo e Executivo foi manifestado, respectivamente, no momento da aprovação e da sanção da Lei de Biossegurança.

No dia 12 de fevereiro de 2008, o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS se reuniu e referendou a aprovação de dois eventos de milho geneticamente modificados, considerados seguros pela CTNBio, ação que pode ser considerada a mais consistente manifestação do Poder Executivo no sentido de admitir a introdução de produtos transgênicos no sistema produtivo nacional.

Seguramente este é o melhor cenário para a biotecnologia moderna no Brasil desde 1995, e caso o STF julgue improcedente a ADI que contesta a constitucionalidade de alguns pontos da Lei 11.105/05, teremos uma legislação e um sistema de biossegurança definitivamente consolidados nos âmbitos jurídico e administrativo.

O Brasil precisa do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança?

Efetivamente não. No Brasil, o desenvolvimento e o uso de biotecnologias oriundas da engenharia genética são atividades regulamentadas desde 1995 e o sistema doméstico de biossegurança sempre funcionou com muita eficiência.

Tema importante e atual, as negociações relacionadas à complementação do texto do Protocolo de Cartagena merecem plena atenção do governo brasileiro e do setor privado interessado, não pelos benefícios que poderá trazer ao país mas pelo potencial que tem para criar dificuldades para a introdução da biotecnologia moderna no sistema produtivo brasileiro, especialmente no sistema produtivo agrícola.

O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança da Convenção sobre Diversidade Biológica, celebrado em Montreal em 29/01/2000, entrou em vigor no âmbito internacional em 11/09/2003, foi aprovado pelo Congresso Nacional no dia 21/11/2003, recebeu a adesão do Brasil em 24/11/2003, entrou em vigor para o Brasil no dia 22/02/2004 e foi promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto nº 5.705 em 16/02/2006. Este último ato, do qual são inerentes a promulgação do documento, a publicação oficial do texto e a executoriedade do tratado que passa a obrigar no plano do direito positivo doméstico, concluiu o procedimento de incorporação dos tratados internacionais.

O artigo 1º do Decreto nº 5.705/06 determina que o Protocolo deve ser executado e cumprido inteiramente, foi publicado no Diário Oficial da União no dia 17 de fevereiro de 2006 e entrou em vigor na data de sua publicação.

Verifica-se, portanto, que o Protocolo de Cartagena cumpriu o itinerário procedimental de incorporação de tratados que pode lhe conferir, no âmbito interno, hierarquia equivalente à lei ordinária. Entretanto, a aplicação plena do Protocolo ao sistema legal brasileiro não se deu de forma automática e não pode ser exigida na atualidade pelo fato de que seu texto não é autoaplicável. Falta-lhe objeto e procedimento claramente definidos e possibilidade de ser aplicado judicialmente em um caso concreto. Seu texto depende de complementações que quando vierem, dependendo da forma e alcance, poderão gerar conflito com a Lei de Biossegurança nacional que a ele é precedente.

O Protocolo, de acordo com seu artigo 4º, aplicar-se-á ao movimento transfronteiriço, ao trânsito, à manipulação e à utilização de todos os organismos vivos modificados que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde humana.

A Lei nº 11.105/05 (Lei de Biossegurança), de acordo com seu artigo 1º, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados.

Uma análise comparativa dos artigos acima mencionados deixa claro que o âmbito de aplicação do Protocolo se sobrepõe ao da Lei de Biossegurança.

Dessa forma, caso o texto do Protocolo de Cartagena seja complementado de forma exaustiva ao ponto de conceder à pessoa um direito claro, aplicável ao caso concreto e exigível perante um juiz , estarão estabelecidas as condições para gerar conflito com a lei precedente, isto é, com a Lei de Biossegurança. Cabe lembrar que para solucionar conflito entre normas que se encontram no mesmo patamar hierárquico, o princípio que assegura a revogação de uma lei por outra que a suceda no tempo é tradicionalmente usado na história jurídica. A Lei de Biossegurança é de 2005 e o Decreto que promulgou o Protocolo é de 2006.

Embora o texto do Protocolo assegure que nele nada será interpretado de modo a restringir o direito de uma Parte de adotar medidas que sejam mais rigorosas para a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica que as previstas no Protocolo, desde que essas medidas sejam compatíveis com o objetivo e as disposições do documento e estejam de acordo com as obrigações dessa Parte no âmbito do direito internacional, cabe observar que, caso o detalhamento das normas do Protocolo sirva para construir um sistema burocrático e excessivamente rigoroso, o Brasil muito poderá ser prejudicado, visto ser um grande exportador de grãos e a observância de normas complexas poderá elevar o custo do produto exportado e desestimular o comércio de produtos oriundos da biotecnologia moderna.

A preocupação com a possibilidade de detalhamento exaustivo da redação do Protocolo tem origem na parte preliminar do documento, onde um parágrafo chama a atenção para o fato de afirmar que no processo de elaboração do Protocolo, levaram-se em consideração os meios limitados de muitos países, especialmente os países em desenvolvimento, para fazer frente à natureza e dimensão dos riscos conhecidos e potenciais associados aos organismos vivos modificados. Essa consideração feita no preâmbulo do Protocolo serve de base para aqueles que defendem a idéia de se ter uma lei de biossegurança internacional, da qual os países que não tem um sistema de biossegurança doméstico possam lançar mão. O que, efetivamente, não é o caso do Brasil.

Diante da situação exposta, resta claro que o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, para o Brasil, é um tratado internacional que poderá mais prejudicar que contribuir. Em outras palavras, o governo errou ao ratificar o tratado em questão e caso não defenda que a construção de sua complementação se dê na forma de estabelecimento de princípios e diretrizes para os Estados Partes se basearem no momento da construção de suas normas domésticas, errará novamente.

Reginaldo Minaré
Advogado e Diretor Jurídico da ANBio

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