Quilombolas do litoral norte de São Paulo conseguem melhores condições de vida através da exploração sustentável da natureza. O Artigo 68 da Constituição Federal diz que: “Aos remanescentes das comunidades de Quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a sua propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Está na Constituição Federal, mas como muitas outras questões documentadas em Lei neste país, este é só mais um artigo constantemente desrespeitado e ignorado pelas autoridades e pelos demais cidadãos brasileiros. Prova disso são as agruras pelas quais vêm passando os moradores do quilombo Caçandoca, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. As terras do quilombo estão no local onde, no século XVII, existia a propriedade de Elídio Antunes, um senhor de escravos, que plantava naquelas terras café e banana, além de produzir farinha.
Elídio teve muitos filhos, que acabaram por gerar filhos com escravas da fazenda, formando assim a geração dos quilombolas que hoje lutam por seus direitos.
Dali são originários cerca de 1000 remanescentes, mas por conta de questões financeiras, de saúde ou ambientais, mais ou menos 400 deles foram obrigados a se mudar de lá. “No momento não podemos tirar uma grama pra plantar um alface, então nós temos aí umas 53 famílias que vão e vem por esses motivos. O marido e a mulher ficam aqui e os filhos ficam em outro bairro pra poder estudar”, explica Antônio dos Santos, Presidente de Honra da Associação da Comunidade Remanescentes do Quilombo Caçandoca. A impossibilidade de plantar vem de uma licença que a prefeitura de Ubatuba não concede. “No momento em que você tira um capim, você é multado. A maioria das famílias daqui foram todas multadas pela polícia ambiental”, conta Antônio.
Mas os problemas dos quilombolas não param por aí. Desde 1630, quando acredita-se que o Quilombo tenha surgido, até há três meses atrás, os remanescentes viviam sem luz. A energia elétrica chegou ao Quilombo, mas não para todos. “Até o momento não foi colocada a luz no quilombo todo e com certeza estão recusando colocar a luz em certas casas. Nós estamos aguardando que isso seja terminado, então essa é uma parte da dificuldade”, afirma Antônio, que acredita que estão criando dificuldades para que os quilombolas não continuem naquele local paradisíaco e praticamente intocado. Antonio conta que pretendiam construir um condomínio fechado naquele local. “Tem muita gente que ainda não se conforma dos remanescentes ficarem aqui então fazem manobras de tudo quanto é forma pra verem se a gente desiste de ficar aqui, coisa que a gente não vai fazer, então podem aparecer pessoas que estão a mando de outras pessoas para pressionar nós.
É uma situação que você não sabe quem é quem”, comenta Antonio, que conta casos de sabotagem, vandalismo e até atentados contra os moradores do Quilombo. “No ano passado foram incendiadas três residências e apedrejaram outra, incendiaram uma lanchonete lá embaixo na praia, derrubaram a nossa capela, que é um patrimônio histórico, aquela capela é de 1950 e nós estamos aí sem nos amedrontarmos. Mas até agora ninguém foi preso e nós não sabemos quem são os responsáveis”, conta.
Mas, se é verdade que os problemas que vivem os quilombolas são grandes, as soluções parecem ser animadoras. A comunidade Caçandoca foi o primeiro quilombo do país a obter a posse de seu território mediante o instrumento da desapropriação por interesse social. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) foi o responsável pela ação, concedendo a posse da área em 5 de dezembro de 2006. Desde então, uma equipe técnica do órgão vem viabilizando a execução de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável da comunidade. “O Incra está dentro do programa de desenvolvimento sustentável e está implementando as políticas públicas destinadas a assentamentos. Tem um recurso de fomento que corresponde a R$ 2.400,00 por família e isso é administrado coletivamente pela associação. Em seguida, há o projeto de moradia. São R$ 5.000,00 por família e também vai ser operado pela Associação. Esses são os principais projetos do ponto de vista de recursos públicos, de políticas públicas”, explica Araquém Andrade, Técnico de Cooperativa do Incra. Fora isso, o Incra apóia os 5 projetos básicos do Quilombo proposto pela Associação, que são a criação de abelhas nativas, a exploração da praia como ponto turístico, a produção de mexilhões, a casa de artesanato e, finalmente, a produção da polpa de juçara, e conseqüentemente, as mudas de palmito.
Este último projeto foi uma grande surpresa para os quilombolas, já que eles não imaginavam o valor que as pequenas frutas dessa palmeira têm no mercado. A juçara é muito cobiçada por causa do palmito que se encontra em seu tronco. Só que ao explorar essa parte, é necessário derrubar a árvore. Já o fruto da juçara pode ser explorado de maneira sustentável, sem derrubar nenhuma palmeira. A Associação dos Remanescentes da Comunidade do Quilombo Caçandoca colhem os frutos desta palmeira nativa três vezes por ano. Depois eles são processados e acondicionados em embalagens próprias para a comercialização. A produção agroecológica do fruto de juçara apresenta boas perspectivas de renda para a comunidade, pois a polpa tem aceitação cada vez maior como energético, utilizada como suco ou em combinações com banana, granola e guaraná.
Um convênio no valor de R$ 20.000,00 firmado pelo Incra-SP e pela Associação permitiu a aquisição de equipamentos para tirar a polpa e embalar os produtos. “Esse convênio foi anterior à desapropriação, anterior aos programas de políticas públicas. O Incra mantém junto com o Ministério do Desenvolvimento Agrário linhas de financiamento, programas de geração de emprego e renda; e a gente apresentou um projeto de aproveitamento dos 35 mil pés de palmito que têm nessa mata para a produção da polpa da juçara. O projeto foi aprovado e isso gerou um convênio entre a Associação e o Incra de São Paulo para o desenvolvimento dessa atividade”, explica Araquém. Esse projeto produziu resultados de capacitação da população local para esse tipo de trabalho, produziu o viveiro de mudas e deu só na primeira safra de 2007, cerca de R$ 4.000,00 líquidos da venda do fruto da juçara na cidade de Ubatuba, segundo Araquém.
A juçara apresenta a mesma particularidade de outra palmeira, o Açaizeiro, produzindo frutos de alto valor nutritivo e econômico. Embora o Açaí seja mais famoso, há pesquisas que constataram quantidades maiores de substâncias como antocianina na juçara. Esse pigmento possui função antioxidante e anti-radicalar que asseguram uma melhor circulação sanguínea e protegem o organismo contra o acúmulo de placas de gordura.
A colheita do fruto da juçara é feita de forma planejada, limitando-se a um em cada quatro cachos produzidos anualmente por pé adulto. Cada cacho fornece cerca de cinco litros de polpa. “A colheita é feita a cada 3 ou 4 meses e nós estávamos vendendo a R$ 8,00 reais o litro. A quantia que a gente tirar, a gente vende. A nossa equipe é de 6 pessoas então a produção estava saindo pouca, mas o lucro é bom, porque além da gente vender o suco, as mudas também estavam sendo vendidas”, conta Antônio. A muda de juçara pode alcançar até R$ 1,80 se for vendida para empresas de reflorestamento. O viveiro já tem mudas de abricó, caju, rosa e plantas medicinais a serem usadas para sustento e comercialização.
Outra conquista da comunidade foi a aquisição de dois freezers, que garantem a refrigeração das polpas de juçara. Neste sentido, o programa Luz para Todos, implantado há dois meses no quilombo, foi outra política pública essencial para garantir um desenvolvimento sustentável para os quilombolas de Caçandoca. O presidente da Associação, Fernando Francisco de Almeida, ressalta que a opção pela colheita do fruto da palmeira juçara foi feita pensando também na recuperação de áreas degradadas. Além de aproveitarem a polpa, as sementes residuais são plantadas no viveiro de mudas já implantado pelo convênio.
Apesar das tantas batalhas e vitórias pelas quais passaram os quilombolas, ainda parece que há um longo caminho a ser percorrido até que alcancem a tranqüilidade. Antônio conta que as palmeiras de juçara estão sendo cortadas clandestinamente por cortadores de palmito que entram na área do quilombo, prejudicando o sustento dos quilombolas e a natureza também, visto que aquela é a maior reserva de palmeira juçara do Estado de São Paulo. “A juçara é dos nossos ancestrais e no pé que dá três cachos a gente só tira dois, se dá quatro a gente tira três e se dá cinco a gente tira quatro, é sempre deixado uma parte”, conta Antônio. É assim, de maneira sustentável e ecológica que dezenas de famílias tiram o seu sustento, resistem às adversidades e ainda preservam a natureza em uma área já tão degradada como a mata atlântica litorânea.