No início da década de 90, o mercado internacional conhecia o Brasil como grande produtor mundial de café. Isso não chega a surpreender, pois desde meados do século XIX o País possui essa condição hegemônia, apesar de grande parte do volume colocado em ofertas ser classificado como de “baixa qualidade”.
Atualmente, começo do séc. XXI esse rótulo permanece, mas com um pequeno acréscimo que faz a diferença. O café de padrão inferior continua sendo vendido ao mercado externo em grandes quantidades, porém, com um pequeno leque de opções, formado por produtos de boa qualidade e, alguns, até qualificados como especiais ou finos. Essa oferta adicional mostra que, de 10 anos para cá, o Brasil tem procurado – e está conseguindo – produzir café com grife.
Um estudo do Pensa-Programa de Estudos dos Negócios do sistema de Agroindústria, da USP, deixa claro que o segmento de cafés especiais (usados para fazer capuccino, expresso, bebidas com apresentação mais elaboradas, entre outros), é o que mais cresce no mercado internacional. Estatísticas da Specialty Coffee, dos Estados Unidos, maior consumidor do planeta, mostra que, em 1969, 97% das vendas totais em supermercados eram representadas pela bebida tradicional e os finos ficavam com os 3% restantes, apenas. Três décadas depois, o convencional tinha sua demanda para 76%, enquanto a procura pelos especiais avançava para 24% das transações no varejo.
Ainda segundo o Pensa, em 1998, os Estados Unidos importaram 3,4 milhões de sacas de cafés finos, dos quais apenas 5% ou 170 mil sacas, foram embarcadas no Brasil. A Colômbia respondia com 32% do volume e figurava como principal fornecedor. Esse mercado é disputado “Palmo a palmo” pela costa rica (10%), Guatemala (14%), Indonésia (3%), com os demais 26% distribuídos por diversos países que não possuem escala significativa.
A atenção dos produtores brasileiros para os cafés especiais teve início em 1991, com a fundação da BSCA – Brazil Specialty Coffee Association (Associação Brasileira de Cafés Especiais), segundo conta José Francisco Pereira, integrante da entidade e diretor geral da Cia. Agropecuária Monte Alegre, de Alfenas (MG). A partir daí, calculados os prós e os contras, confirmadas as vantagens, ocorreu um esforço maior de produção do também chamado “café gourmet” e, ao mesmo tempo, uma divulgação mais intensa do produto no exterior.
Como conseqüência, novos nichos de mercado foram abertos e conquistados, sobretudo na Austrália, Estados Unidos, Europa e Japão, onde, através de operações de marketing externo, palestras, provas (degustação), além de treinamento e assessoria em geral, no âmbito interno “está sendo possível retocar e até mudar a imagem do Brasil, principalmente no que se refere ao controle de qualidade do café”.
Esse trabalho de propagação do produto brasileiro de melhor padrão permitiu, conforme Pereira, constatar que no Brasil “é possível obter vários tipos de café com grife, mesmo continuando a haver um grande volume considerado como de baixa qualidade”. Ailton Santos, produtor em Muzambinho (MG), não só concorda como vai mais além ao manifestar a crença de que os cafés finos “estão revolucionando o setor, e sobretudo, provocando mudanças radicais nos métodos de classificação”. Antes, acrescenta, “os cafés eram selecionados por seus defeitos. Agora, existe todo um referencial para que essa padronização, por assim dizer, seja feita pelo aspecto qualidade. Com isso, todos aqueles conceitos elaborados pelo antigo IBC (Instituto Brasileiro de Café), e em vigor até agora, caiam por terra”.
Pereira também procura desmontar um outro mito ao afirmar que, ao contrário do pensamento comum, o café gourmet não exige um plantio diferenciado, “apartado” do sistema tradicional de lavoura. “Ele perde, sim, tratos culturais mais precisos e adequados, além de restritos ao receituário agronômico. Ou seja, os cuidados necessários para obter uma plantação mais saudável, têm de ser aplicados em todas as etapas, na hora e na dosagem certas. O tratamento exigido pelo cafezal assemelha-se aquele dado a um bebê recém-nascido, que requer atenção especial para ter um crescimento e desenvolvimentos sadios”, compara. O cafeicultor ressalta que o processo é exigente e tem, como ponto de partida, a escolha da variedade que, “deve ser nobre, como o arábica”. É preciso ainda selecionar a semente (muda), estudar o local de plantio em todos os aspectos relacionados à topografia, do solo, insolação, clima, sobretudo temperatura, densidade pluviométrica, enfim “práticas que poucos seguem e aplicam”. Além disso, é necessário estudar o modo de plantio mais apropriado, sobretudo em termos de espaçamentos entre as plantas, “se o adensado (acima de 4 mil pés/ha), ou o tradicional (1.500 covas/hectare)”.
Outra exigência, conforme Pereira, é estar atento às necessidades nutricionais da planta, defendê-la das pragas e enfermidades, enfim, todo o aparato de manejo que garanta o bom desenvolvimento da lavoura. Nesse aspecto, o gerente de produção, José Odivar Calheiros, afirma que os maiores problemas apresentados pelos 7,5 milhões de cafeeiros da empresa, plantados em 2,7 mil hectares, “estão relacionados com a broca e a ferrugem”. Porém, acrescenta, “o controle é eficaz e o combate é feito com agrotóxico com baixo teor de agressividade ao meio ambiente” uma preocupação visível na propriedade.
Entretanto, conforme Pereira, o que realmente preocupa é o clima. “Esse é um fator imprevisível”, enfatiza. Qualquer ocorrência enquadrada como anormal “dá problema”. apesar disso, pondera que, não só em Monte Belo (cidade próxima a Alfenas e onde está situada a sede de empresa), mas no Brasil, de modo geral, as estações climáticas são bem definidas, “e isso é bom”, porque sinaliza as evoluções da planta e até a própria época de colheita.
Dessa forma, assinala, a maturação depende da região (quente ou fria), da variedade (tardia ou precoce), do sistema de plantio (aberto ou adensado), da insolação do terreno, ocorrência de chuvas e da florada. Segundo Calheiros, a região, nesses aspectos, tem sido favorável. “Tem seus altos e baixos, mais um acaba compensando outro”. Pereira lembra que os cafezais da Monte alegre estão localizados numa altitude que varia de “um mínimo de 800 metros a um máximo de 1000 metros. A incidência de geadas é menor e a ação dos ventos não danifica muita lavoura, ao contrário do que acontece no sul (Paraná e São Paulo)”.
Segundo ele, esses cuidados são essenciais para a obtenção de um café que tenha como alvo a classificação de “especial”. Esse tipo de produto é definido, por ele, como “de alta qualidade, porque tem aroma, sabor, consistência de paladar próprio. Em suma, é isento de qualquer tipo de defeito”. Na Monte Alegre, é resultado plantio das espécies Mundo Novo, Catuai, Icatú e Bourbon, todas da família do arábica.
Se o desenvolvimento da lavoura exige atenções acuradas, as fases de colheita e pós-colheita não deixam por menos, conforme Pereira. Ao que diz, no Brasil acontecem três florações, “que são as principais e, ás vezes, até quatro”, com início na Primavera. No Verão, ocorre a formação e início de maturação do fruto. No outono, o amadurecimento é quase total e tem início a colheita que, geralmente, atravessa o período de Inverno. Essa época, acrescenta é mais propicia porque a temperatura é mais fria, inclusive para as operações de pós colheita, como lavagem, secagem, entre outras que abrangem o preparo inicial da elaboração do gourmet.
A colheita pode ser feita de três maneiras: derriça, seletiva ou a de dedo e mecanicamente. No caso do especial, a operação preferencial é a do dedo, pela qual são colhidos apenas os frutos maduros. Esse método, até pouco tempo atrás, era pouco utilizado, mas, com a busca pela qualidade, está começando a se tornar comum. Para esse objetivo ser atingido, o manuseio no pós-colheita é um processo delicado. Esses grãos maduros, segundo Pereira, são destinados ao preparo depois de despolpados ou descascados, desde que apresente tamanho uniforme, “pois quase sempre agregam maior valor, visto que apresentam poucos defeitos ou impurezas”.
Ainda conforme Pereira, Existem duas maneiras de processar o produto: pela “via seca”, que são os cafés de terreiro; ou “via úmida”, que resulta no despolpado ou descascado. O método seco assinala não dispensa totalmente a água, pois usa o lavador/separador. Já o processo úmido usa muita água, com frutos maduros e secos (também chamados bóias), que são separados por um cilindro específico instalado junto ao equipamento despolpador. O café despolpado é degomado para a retirada da mucilagem. Essa operação consiste na retirada da polpa do fruto(cientificamente chamado de mesocarpo), uma espécie de goma, através ou da fermentação natural, ou meios químicos, ou, ainda, mecânicos (chamados desmuciladores).
Isso feito, acrescenta, o café deve ser batido, ou mecanicamente ou com rodo manual, para remover resíduos livres da mucilagem, seguido de duas ou três lavagens com troca de água. Sem isso, pode ocorrer a permanência de açúcar que, depois de atravessar o pergaminho (uma fibra que envolve o grão), vai repousar numa película prateada que, devido a essa contaminação, escurece ao ser torrada. O passo seguinte, diz o diretor da Monte alegre, é secar o café em secadores ou no terreiro. Essa secagem deve ocorrer a uma temperatura de 45º C, “no sol ou na máquina, que deve ter um sistema sofisticado de controle. Nessa temperatura, a preservação da qualidade é maior”, indica.
Na seqüência, conforme Pereira, ocorre a armazenagem em silos ou tulhas de madeira “onde o café passa por um período de descanso acima de 30 dias. Isso é necessário para que as características aromáticas e de sabor sejam solidificadas. “Existem casos em que “o produto fica meses descansando”, acrescenta. Também na estocagem, diz que existem algumas medidas de preocupação para assegurar a obtenção da qualidade. Entre elas, cita que o café pode ser armazenado em coco ou pergaminho, geralmente a granel, logo depois de seco e antes do beneficiamento. Já os beneficiados devem ser acondicionados em sacos de juta e empilhados uns sobre os outros. Com relação ao galpão de armazenagem, o diretor da Monte Alegre observa que as regras da boa construção exigem que a cobertura deve usar telha de barro ou de alumínio, nas regiões mais quentes. O piso deve ser elevado ou impermeabilizado, para evitar infiltrações de umidade do solo. O pé direito deve ser alto (mais ou menos 5 metros) para comportar pilhas altas e facilitar a ventilação. Deve, ainda, haver aberturas nas laterais e na cobertura para a iluminação e livre circulação de ar. A temperatura ambiente deve ser amena e oscilar em até 20ºC, com a umidade do ar em torno de 65%, principalmente para estocar café em coco.
Nessas condições, o prazo de estocagem pode ser de anos. Já o período ideal de armazenamento do café em pergaminhos é, no máximo, um ano e apenas seis meses para o beneficiado. Para isso, ressalta, é preciso que haja um controle rígido sobre a temperatura, umidade e luz, bem como o combate eficiente à uma eventual praga que possa contaminar os grãos. Pereira enfatiza que é imprescindível observar a umidade dos grãos no início da estocagem, que não pode superar 11% ou 12%, no arábica, pois o conillon (ou robusta), suporta até 13%, como teto.
O diretor da Monte Alegre que não estoque de passagem formados com café gourmet. Garante que “toda quantidade produzida é vendida”. Até porque, acrescenta, “depois do terceiro ou quarto mês, o produto começa a perder as características. Então, é muito levar esse tipo de café de uma safra para outra”, arremata. O transporte, ainda conforme Pereira, também é outro item estratégico, pois o produto, apesar de acabado, ainda exige cuidados com o ambiente no geral, levando em conta aspectos como limpeza, sacarias específicas, containeres limpos, embalagens de papel “craft”, para evitar umidade, entre outros. “Existem empresas que transportam em container refrigerado. Embora isso não seja comum, existe”, assegura. Sobre a torrefação, alega desconhecer os parâmetros adotados. Entretanto, isso não o impede de afirmar que o processo “deve exigir, com certeza, um ponto certo, pois é preciso manter as características do aroma e do paladar”.
Com relação ao volume total de produção de cafés finos, estima que “da safra total, de um produtor, ele consegue classificar, como fino, alguma coisa em torno de 20%”. Para ele, a quantidade obtida por todos os integrantes da BSCA “não totaliza mais de 120 mil sacas. Um pouco mais, um pouco menos, por ano”. Sobre os custos de produção, afirma não ter dados objetivos, mas assegura “que são maiores que os praticados pela cafeicultura. As exigências operacionais para uma qualidade melhor, como colheita seletiva, melhoria da infraestrutura, sem falar que esse tipo de produto pede ações rápidas e precisas, são fatores de encarecimento. Porém tudo isso requer investimentos, gastos maiores, pois são itens que adicionam custo, embora agreguem valor e fazem a venda final compensar”.
Esse ágio, segundo ele, varia conforme o produto, país de origem, vendedor, entre concurso promovido pela BSCA Conseguiu vender uma saca de café fino por US$ 735,13, cerca de R$ 1,8 mil, pelo câmbio da época. Na ocasião, o mercado pagava US$ 45 pela saca do convencional”. Nesse tipo de venda (pela internet), o valor mais baixo, obtido pela saca do especial “bateu em US$ 204,99/sc”, diz ele, Em linhas gerais citando dados da Monte alegre, Pereira assinala que “há um acréscimo nas despesas de produção, por hectare, entre 10% e 15%, que permitem agregar até 30% no valor de venda final, no mercado atual”.
Sobre a possibilidade de o produtor vir a ser comercializado no mercado futuro, através dos leilões da Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F), Pereira considera essa operação “inviável”, pelo menos por enquanto. Os contratos vigentes possuem dispositivos que conflitam com os objetivos dos produtores de café especial. “Nesse caso, o nosso produto está na contra-mão do mercado de commodities”, pondera.
Quanto ás medidas governamentais de apoio, o cafeicultor afirma que “não existe qualquer excepcionalidade”. Ou seja, o tradicional, embora “existam estudos para a criação de uma linha específica de financiamento”. Na área de pesquisa, aponta trabalhos em andamento na Embrapa, IAC, Ital, todos relacionados aos quesitos de qualidade, “porém, ainda sem resultados”. Segundo Pereira, o apoio do governo está restrito ao setor de marketing. Existe um programa no Ministério da agricultura, denominado “Cafés do Brasil”, que contempla o gourmet. Esse plano disponibiliza cerca de R$ 1,4 milhão “para os especiais, que são a ponta da lança na divulgação no mercado externo. A intenção é mostrar que o Brasil tem condições de não só produzir cafés diferenciados, mas também consegue agregar valor”. O programa, acrescenta, beneficiar vários segmentos do setor e é realizado em conjunto com a Apex – Agência de Promoção de Exportação, e coordenado pela BSCA.
No âmbito interno, uma das promoções é o concurso “Cup of Excellence”, realizado pela associação em parceria com a SCAA (Specialty Coffee Amercan Association), dos Estados Unidos. A participação é aberta a todo e qualquer cafeicultor, desde que mande um lote de amostras para pré-julgamento. O júri é internacional e composto por 16 a 20 membros, “de todos os continentes”. Esse elenco de pessoas faz a seleção final e classifica o melhor café do ano. Os produtos classificados são oferecidos para a venda em leilão, via internet coordenados pela SCAA. “Os produtos arrematados, geralmente, conseguem preços bem superiores aos do mercado”, garante.
Toda essa agitação promocional, nos bastidores dos cafés finos, conforme Pereira, oferecer aos visitantes gourmet para a degustação.