Depois de um anúncio enfático do governo federal sobre uma série de isenções tributárias, a cadeia produtiva do agronegócio, a qual se relacionada diretamente com a maioria dos produtos contemplados, chega nem sequer a perceber o impacto da medida – pelo contrário, para o setor de laticínios, por exemplo, a desoneração tornará a produção mais cara (então, queijo mais barato no supermercado, nem pensar!).
Talvez a expressão ‘para inglês ver’ seja a que mais represente fielmente o anúncio do governo federal sobre as desonerações acerca do Programa de Integração Social e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (PIS/Cofins) e do imposto sobre produtos industrializados (IPI) em itens da cesta básica. No dia 8 de março, a presidente da República, Dilma Rousseff, veio em cadeia nacional anunciar o corte desses dois tributos como uma forma de comemoração ao Dia do Consumidor (15 de março) – carnes bovina, suína, ovina, caprina, de aves, de peixes, arroz, feijão, ovo, leite integral, café, açúcar, farinhas, pão, óleo, manteiga, margarina, frutas, legumes, sabonete, papel higiênico e pasta de dentes ficariam livres de pagamentos desses impostos.
Em tese, os cortes serviriam para baratear o custo de produção da cadeia de produção agrícola, o que refletiria na redução dos preços dos alimentos. No entanto, o que se percebe é uma série de aspectos que indicaria que isso nem venha a ocorrer. Isso porque muitas das desonerações anunciadas já estavam em vigor desde 2004. Além disso, como as isenções tributárias não ocorrem na cadeia produtiva como um todo, o barateamento perde efeito frente a outros custos que interferem ainda mais na precificação dos produtos. Alguns aspectos dessa política só transferem a tributação de segmento para outro dentro da cadeia e, pior, tornou o custo de produção mais elevado, como é caso de laticínios. E, por fim, a lei de oferta e demanda é a única que realmente detém o poder de baratear ou encarecer toda a cadeia de produção. O caso do tomate é exemplo vivo disso, mesmo com isenções datadas lá de trás, tem sido um peso para a cesta básica. Em muitas regiões produtoras, as chuvas contribuíram para a queda da safra, além do encarecimento do frete. Para isso, não há isenção de tributos que possa resolver.
O barato sai caro
Quem diria que uma medida de corte de tributos pudesse tornar a produção mais cara. Isso é o que ocorre com a tributação de PIS/Cofins. “São duas contribuições federais estabelecidas pela constituição do País, e incide em operações realizadas por pessoas jurídicas, como produtores rurais pessoas jurídicas ou agroindústrias”, diz Fábio Pallaretti Calcini, advogado doutor em Direito do Estado pela PUC/SP e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e sócio da Brasil Salomão e Matthes Advocacia. “São cobrados sobre a receita bruta obtida por tais pessoas jurídicas com a venda de mercadorias e (ou) prestação de serviços, além de outras receitas como aluguéis. A tributação poderá ser de 0,65% (PIS) e 3% (Cofins), no caso de pessoas jurídicas optantes pelo lucro presumido ou algumas situações expressas em lei. Neste caso, temos o regime cumulativo de PIS/Cofins e a base de cálculo é sobre o faturamento somente (venda de mercadorias/prestação de serviços e não há tributação quanto a outras receitas)”.
A distorção da desoneração ocorre na modalidade na qual a empresa opta pela cobrança baseando-se no lucro real dela, nesse caso os porcentuais de cálculo do imposto são mais altos – 1,65% (PIS) e 7,6% (Cofins). De acordo com Calcini, partir dela dá-se um regime não-cumulativo, o qual permite, conforme o artigo 3º da Lei 10.833/2003, o acúmulo de créditos que podem servir de abate no pagamento desses impostos em questão. Mas, agora, com a isenção desses respectivos tributos, as empresas passam a acumular créditos que não serviriam pra nada. “Nesse sentido foram criadas legislações específicas que permitiram o uso desses créditos no abatimento de outros impostos. Isso aconteceu para a produção de bovinos, aves e suínos e café, por exemplo. Só não ocorreu para laticínios”, afirma Calcini.
Para a Tirol, indústria de laticínios de Santa Catarina, a medida proposta está totalmente equivocada. “O governo discursa conforme lhe convém”, diz o corpo de direção da empresa em nota, “ou seja, quando fala com as indústrias, diz que deu crédito presumido e que isso vai reduzir o custo, mas não deixa que esse crédito se realize, seja na conversão disso em dinheiro ou benefício, obrigando as empresas a contabilizar como prejuízo. Quando fala com o consumidor, diz que desonerou os impostos federais, como de fato fez, mas com essa medida não permite a realização dos créditos dados às indústrias. De certo modo, o governo implanta as políticas fiscais, mas quem arca com ônus é o empresário”.
Desde o anúncio, a Tirol ressalta ainda que isso trouxe uma certa pressão para que os preços dos produtos de fato baixassem. “A manteiga, por exemplo, era um dos poucos produtos que ainda incidia PIS e Cofins sobre a saída, pois, de longa data, o governo federal, já não tributa o grande volume da cadeia industrial dos lácteos leites, queijos, bebidas e iogurte. Por outro lado, instituiu-se um crédito presumido desses impostos que deve ser apropriado na compra da matéria-prima, gerando um crédito, que só pode ser utilizado no abatimento de débitos dos mesmos impostos. Como não há geração de débitos, pois os produtos não são tributados, esse valor onera o resultado das indústrias, sendo que não há possibilidade de sua realização. A boa prática contábil regulamenta que ativos não realizáveis devem ser provisionados como perdas. Diante disso, com o advento da não tributação da manteiga, o valor do crédito presumido gerado sobre a produção dela, vai aumentar a provisão e consequentemente reduzir o resultado indústria, o que por fim acaba não causando o impacto nos preços”, explica a Tirol.
Só passou de mãos
Outra estranheza da desoneração de PIS/Cofins incide especialmente no setor sucroalcooleiro. Segundo Calcini, a usina efetivamente deixou de pagar pelo imposto, mas agora é cobrado na ponta inicial, o produtor. “Com a Medida Provisória (MP) 609/2013, a venda de cana-de-açúcar para a usina pelo produtor rural pessoa jurídica deve sair com tributação (lucro presumido PIS/Cofins 3,65% ou real 9,25%). Daí, a usina fará o açúcar que venderá no mercado interno com alíquota zero de PIS/Cofins”. Anterior a essa medida, prevalecia na Lei 10.925/2004 que a venda pelo produtor rural pessoa jurídica era suspensa da cobrança desses impostos, baseado no artigo 9º, pelo fato de a cana ser insumo para fabricar o açúcar. Com a MP, há literalmente a suspenção da suspenção. O açúcar perde o efeito do artigo 9º e o produtor passa a ser tributado. Aí, quem vai arcar é novamente quem produz.
O açúcar pode ser um dos únicos produtos do agronegócio que realmente devem sofrer reajustes de preços no mercado, pois incide num importante formador de preço, a indústria, a qual também foi desonerada pelo IPI do produto, saindo de uma alíquota de 5% para zero. Outros produtos como o óleo, podem ter diferenças tão sutis que, talvez, nem surtam reflexo mercado.
A grande questão, nesse caso, é o entendimento de que a cadeia produtiva é muito longa e nela se escondem tributações que passam despercebidas, mas que, no final das contas, contribuem com o encarecimento do custo de produção. Talvez o governo só enxergue ou queira enxergar o fornecedor de matéria-prima (o produtor), o beneficiador dessa matéria-prima (a indústria) e o vendedor do produto acabado (o varejista). Mas ainda há os fornecedores de embalagens para produtor e indústria, o transporte de mercadorias e o preço do combustível, a mão de obra, a falta de infraesturura nas estradas, entre outros pontos históricos que compõem a cadeia produtiva e que vão gerando resíduos de impostos. “Em especial, PIS/Cofins tem sua tributação sobre a receita, de maneira que se paga tributo em toda e qualquer circunstância. Com lucro o prejuízo, há essa tributação e sua alíquota no regime não-cumulativo é alta”, avalia Calcini. “É certo que existem créditos para abatimento no sistema não-cumulativo, mas, especialmente, na atividade do agronegócio, muitas vezes, não neutralizam plenamente a tributação da cadeia produtiva anterior, ou, quando neutraliza, isto se dá por meio de créditos acumulados, o que também não se torna interessante”, frisa o especialista.
Cortes muito antigos
Pelas contas do governo – e só do governo –, a isenção de impostos federais pode levar a redução de pelo menos 9,25% no preço das carnes, do café, da manteiga e do óleo de cozinha, e queda de 12,25% no preço da pasta de dentes e dos sabonetes. Isso poderia se refletir numa renúncia de R$ 7,3 bilhões por ano na arrecadação. Tudo isso em nome da redução do preço final de itens essenciais à cesta básica, mas também a redução de custos para produtores rurais e comerciantes, o que poderá beneficiar a expansão de pequenos negócios e ajudar a estimular a economia, segundo a crença de Rousseff.
No entanto, o governo não explicou que grande parte desses cortes de impostos já havia sido feitos, há uns nove anos. Uma empresa que está em atuação desde essa época e se beneficiou com os cortes é a VPJ Alimentos, do Grupo VPJ, que iniciou as atividades em 1993 na produção de carne com cortes especiais a partir de programas de melhoramento genético. Atualmente, a empresa processa carne bovina angus, cordeiro e de suíno.
Sobre os cortes atuais, para a empresa, não deve haver mudanças. “A VPJ Alimentos é uma empresa de produtos cárneos, sendo assim já usufruía do benefício da suspensão do pagamento do PIS e da Cofins para bovinos e suínos”, declara Antonio Augusto Rodrigues Miranda, gerente da VPJ Alimentos. “Apenas para o setor da ovinocultura e que houve uma pequena redução, e que não irá gerar reflexo significativo em nosso custo de produção, pois já utilizávamos crédito gerado na compra da matéria-prima”.
Outra indústria que também não vai nem sentir o efeito das novas desonerações é a SLC Alimentos, braço industrial e de beneficiamento de alimentos da SLC Agrícola. “As alterações não impactaram nos negócios da SLC Alimentos, tendo em vista que os produtos que trabalhamos arroz e feijão, já eram tributados com alíquota zero, não foram afetados com a desoneração de tributos anunciada pelo governo federal”, argumenta o controller da empresa, Rafael Dalla Colleta. “A Lei 10.925, de 23 de julho de 2004 já havia reduzido à alíquota zero os produtos arroz e feijão”.
A novidade de redução tributária vai efetivamente para as carnes ovina e caprina, de peixes, café, óleo de soja, açúcar, margarina e produtos de higiene. É muito possível que os impostos desses itens não somem R$ 7,3 bilhões anuais.
Complexo e demorado demais
Apesar dos pesares, Calcini vê com bons olhos a atitude do governo federal na redução fiscal, em especial, tributos que incidem sobre os resultados de ganhos das empresas, como é o caso do PIS e da Cofins. O tributarista exemplifica isso a partir de uma inovação ou tecnologia que um empresário queira trazer para o mercado, em forma de produto. A partir da venda e mesmo sem receber o pagamento pela mercadoria, ele deve arcar com o recolhimento do imposto. Nesse sentido, a legislação tributária brasileira cria certas situações que emperra o franco desenvolvimento da economia. “Apesar da finalidade ser totalmente justa e legítima, infelizmente, nosso sistema tributário é muito complexo, de maneira que esta alteração, reduzindo a alíquota para zero, não significa necessariamente uma redução do preço final dos produtos para o consumidor. É importante ressaltar que esta afirmação não decorre de egoísmo ou busca por maiores lucros pelo setor produtivo. Em verdade, a desoneração somente se deu em uma ponta da cadeia produtiva, continuando a tributar inúmeros insumos, embalagens de significativa importância na fabricação destes produtos. Sem esta desoneração, a redução não se dá por completo. Além disso, em algumas empresas esta redução ficará ‘parada’ em créditos acumulados de IPI e PIS/Cofins, impedindo que os empresários consigam de forma automática repassar a redução para frente, além de gerar um problema de fluxo de caixa”.
Em resposta aos tamanhos desencontros dessa medida, o Ministério da Fazenda diz sucintamente, através de assessoria de imprensa, que está ciente da questão e deve estudar formas de contornar as situações conflitantes geradas por esse pacote de desonerações.
Todas essas críticas servem de amostra de como o sistema tributário brasileiro é complexo. A partir disso, cria-se uma série de inseguranças – os impostos que são pagos pelos contribuintes são realmente os devidos? Depois de pagar tudo que se deve, ainda se deve alguma coisa? Há deveres sendo pagos em duplicidade? Nesse rolo todo de indagações, está o trabalho do jurídico das empresas que literalmente se debruçam para entender e realizar todas as obrigações acessórias, como as inúmeras de declarações de ganhos e de renda dentro de seus devidos prazos.
Um exemplo disso foi revelado no início de outubro no ano passado por um estudo feito pelo Latin Business Chronicle, uma divisão do Latin Trade Group, que oferece mecanismos de inteligência de mercado através de notícias diárias, e ranques, índices e estatísticas detalhados. Segundo o estudo, que toma por base dados do Banco Mundial, KPMG e Fundação Heritage, o Brasil chega a gastar 2.600 horas do ano ou 108 dias para pagar impostos. Com este feito, o País está no topo da lista, pela segunda vez, entre os países da América Latina. Além disso a carga tributária brasileira foi a segunda maior, com 34%, perdendo o posto para a Argentina e Honduras, que possuem um índice de impostos que chegam a 35%.
Para se ter uma ideia, considerando os valores, pesos e complexidade, o Brasil é considerado pelo Latin Business Chronicle um dos países com os piores sistemas tributários do mundo. A saída, segundo Calcini, seria a simplificação das obrigações acessórias e a desburocratização fiscal. E chega de mudanças que não mudam nada, né.