Transformar um problema ambiental em benefício sócio-econômico. Há quase dez anos, uma novidade chegou nas lavouras e agradou em cheio a muitos produtores: o fertilizante orgânico, proveniente do tratamento do lodo do esgoto. Além de ajudar o meio ambiente, ele se tornou para alguns uma opção para fertilização da lavoura.
“O lodo de esgoto é um material rico em matéria orgânica e nutrientes, por isso teve o seu aproveitamento na agricultura, como fertilizante orgânico”, diz Fernando Carvalho Oliveira, engenheiro agrônomo da Biossolo Agricultura & Ambiente Ltda., responsável técnico pelo projeto.
“O único ônus é com o frete e o bônus é que não tem diferença nenhuma com o fertilizante nitrogenado industrializado, se produz a mesma coisa”.
Em dezembro de 2005, a Revista Rural realizou uma reportagem sobre os desafios enfrentados pela cadeia produtiva da suinocultura. Na época, uma das grandes divergências dos criadores era qual o destino final dado ao elevado volume de dejetos líquidos produzidos pelos animais. Na ocasião, a equipe mostrou uma granja com 300 matrizes, em ciclo completo, que chegava a produzir cerca de 45 mil litros de dejetos por dia – para se ter uma ideia disso, essa quantidade era equivalente ao lixo de uma cidade com 75 mil habitantes.
Segundo especialistas em gestão ambiental, a carga poluidora desses dejetos chega a ser 25 vezes maior do que o esgoto humano. Entretanto, naquela época, a reportagem acompanhou que, aos poucos, o reaproveitamento dos dejetos suínos estava em prática, tornando-se alternativa para a cadeia, uma vez que ainda funciona de forma eficiente, servindo como renda para os criadores, a partir da produção de adubo orgânico líquido (utilizado na agricultura) e, evitando assim que os efluentes (mais conhecidos como chorume) sejam direcionados para o solo e, sobretudo, ocasionando prejuízos ao meio ambiente.
Ao mesmo tempo, que essa alternativa chegava na suinocultura, alguns projetos semelhantes saíam do campo e iam em direção à cidade, para sanar um dos maiores problemas dos grandes centros: o destino do lodo gerado no tratamento de esgotos. Na Grande São Paulo, por exemplo, só o Rio Tietê recebe mais de um bilhão de litros de esgoto todos os dias. Na região metropolitana da capital paulista, são quase 19 milhões de pessoas, e menos dessa metade têm o esgoto tratado.
Foi para resolver a questão e até servir de exemplo que a Companhia Saneamento de Jundiaí (SP) (cidade com aproximadamente 350 mil habitantes), implantou em sua Estação de Tratamento de Esgoto um projeto para aproveitar a produção diária de 250 toneladas de lodo de esgoto, reciclando-o e produzindo a partir disso, o fertilizante orgânico composto classe D (um produto pronto para a agricultura). “O lodo de esgoto é um material rico em matéria orgânica e nutrientes, por isso teve o seu aproveitamento na agricultura, como fertilizante orgânico”, explica Fernando Carvalho Oliveira, engenheiro agrônomo da Biossolo Agricultura & Ambiente Ltda., responsável técnico pelo projeto.
Há menos de dez anos, pouco se ouvia falar da utilização do lodo na agricultura no Brasil. Porém, o uso agrícola do lodo não é recente, ele é usado a mais de 70 anos em países, como Canadá e Estados Unidos. No Brasil, se deu nas estações de tratamento de esgoto de Brasília, já na década de 60, principalmente, quando houve um esforço para o tratamento de esgoto das grandes metrópoles. Entretanto, em São Paulo, apenas as cidades de Franca e Jundiaí mantêm o projeto com a utilização do lodo.
Lá na Companhia Saneamento de Jundiaí, para concluir o projeto que começou em meados de 2001, foi realizado um trabalho junto aos produtores que estavam interessados na utilização do material. “Há ainda muita confusão entre o lodo de esgoto com o esgoto. Temos na verdade uma matéria orgânica transformada. O lodo não é o material fecal que se apresenta no esgoto. Essa matéria orgânica foi transformada por microorganismos, o que deu origem ao lodo e como não bastasse ainda se usa a tecnologia da compostagem, para promover mais uma transformação desse material orgânico”, ressalta.
A ideia, que foi novidade entre muitos produtores há algum tempo atrás, foi bem aceita. Um dos produtores, que acreditou nas vantagens do composto, foi Hélio Angelieri. Há três anos, ele substituiu por completo os fertilizantes industriais. “Apenas acrescentei a vinhaça que fornece o potássio, que não tem no fertilizante orgânico proveniente da compostagem do lodo de esgoto urbano”, conta o produtor que passou a adotar nos seus 100 hectares de cana. “Em outubro realizaremos nova aplicação. O único ônus é com o frete e o bônus é que não tem diferença nenhuma com o fertilizante nitrogenado industrializado, se produz a mesma coisa”, admite.
Ele lembra que, dependendo da época, o fertilizante alternativo fica mais barato, mas já houve momentos em que o preço do industrializado estava muito abaixo e o frete para buscar o fertilizante orgânico composto pesou ao bolso do agricultor. “No mês de março, houve um aumento de 20% a 30% do adubo industrializado. Hoje compensa ir buscá-lo”, argumenta. Pelas contas do produtor, o frete sai a R$ 30, a tonelada. “Utilizo apenas 12 toneladas por hectare”, acrescenta Angelieri, que tem sua propriedade a 95 quilômetros de Jundiaí.
Um outro produtor de cana-de-açúcar e um dos pioneiros a utilizar o fertilizante alternativo foi Arlindo Batagin Júnior. “Fizemos um projeto para aplicação do composto em larga escala. Naquela época, apliquei em 40 hectares (ha), 20 ha na soqueira da cana e o restante no sulco da cana”, lembra Batagin. “Percebemos que o produto tem uma boa matéria orgânica, oferece a lavoura uma boa brotação e longevidade da cultura. Vimos diferença também no número de cortes. No uso do fertilizante convencional fazíamos até cinco cortes e com o composto atingimos até sete. Só no quesito de produção que não houve diferença entre si”, argumenta, o produtor da cidade de Mombuca, a 165 quilômetros da capital paulista.
Há um ano, um dos motivos que fez o produtor de cana parar de utilizar o fertilizante orgânico foi o pagamento do frete. “O custo se tornou inviável. Mas, para aqueles que estão mais próximos da região produtora ainda compensa”, diz.
No ano passado foram produzidos 9.500 toneladas de fertilizantes orgânicos, em 2008 a produção chegou a 18 mil toneladas. Para o engenheiro, essa retração tem uma explicação: antigamente o produtor de cana-de-açúcar não desembolsava nenhum “tostão” pelo fertilizante alternativo, sequer pagava o frete. “Hoje, eles custeiam o frete do produto e na opinião de alguns deles se torna mais caro que o convencional”, comenta. Ele lembra também que em 2009, em decorrência da crise econômica, que também abalou o setor canavieiro, cerca de 60% do que foi produzido foi destinado para a citricultura. “Uma parcela para a cultura de eucalipto, cerca de 35% e o restante para café, milho e produção de mudas de espécie nativas”, informa.
A utilização do lodo devidamente tratado é enquadrada por lei e recebe a denominação de fertilizante orgânico composto classe D, registrado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), como produto de uso seguro na agricultura. Há critérios e procedimentos para uso agrícola do fertilizante orgânico produzido na estação de tratamento. O fertilizante orgânico é fornecido para produtores de citros, eucaliptos, cana-de-açúcar, flores e café. O uso desse fertilizante é vetado pelo Mapa em hortaliças, olerícolas, pastagens e capineiras, raízes e tubérculos. O argumento é que o consumidor final tem contato direto com esses alimentos e que há mais segurança no uso do fertilizante em produtos que serão processados ou cozidos.
Por esses requisitos, o engenheiro lembra que nem todos terão acesso, uma vez que a procura é maior do que a oferta e o fertilizante pode ser produzido somente em regiões que fazem o tratamento de seus esgotos, o que ainda são casos isolados. “Mas, a tendência é uma ampliação nacional”, diz. Segundo Oliveira, também não há uma ampla divulgação. “Muitos desconhecem o produto. E há outras dificuldades que são as normas que regem a utilização, como adequação a parâmetros de qualidade, elevados custos de tratamento, entre outros. Há um procedimento rigoroso que é preciso seguir e acaba dificultando o uso do produtor”, aponta.
Hoje, o fertilizante alternativo é destinado para outros municípios paulistas, como Bragança Paulista, onde a aplicação é feita nas plantações de café e milho; em Itatinga, a utilização é feita em eucalipto; nas cidades de Capão Bonito, Angatuba e Mogi Mirim, a aplicação é realizada em citros e em Porto Feliz, os produtores utilizam na cultura da cana.
De acordo com o engenheiro, há uma demanda crescente por medidas em prol ao meio ambiente. Existem grandes centros urbanos que estão próximos à escassez de água tratável. “O tratamento de esgoto além de uma medida de saneamento é também uma medida obrigatória para essas regiões no sentido de preservar os recursos hídricos”, enfatiza.
O uso do alternativo
A aplicação do fertilizante só pode ser feita com base em normas estabelecidas pela Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb), ligada à Secretaria do Meio Ambiente e pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) “O terreno, por exemplo, deve ter declividade máxima de 15% (para que o material não escorra com as chuvas) e é preciso manter distância mínima de 100 metros entre a área de aplicação e um manancial. O fertilizante orgânico só pode ser manejado por meio de máquinas e seu uso é proibido perto de áreas domésticas e em culturas como hortaliças e de plantas rasteiras”, esclarece o engenheiro.
O lodo tem vantagens agronômicas sobre os fertilizantes industriais, diminui, a médio e longo prazo, o uso de fertilizantes químicos devido à incorporação dos nutrientes formados durante a compostagem. Ainda, protege o solo contra a degradação, pois funciona como uma esponja, ajudando a reter a umidade e nutrientes. Além de não poluir os rios, a geração de fertilizante evita o acúmulo destes materiais em aterros sanitários, que, no caso de São Paulo, ou estão lotados ou custam caro.
Oliveira também adverte: “O fertilizante orgânico, obtido a partir do tratamento do lodo pela compostagem, não tem a pretensão de aumentar a produtividade e sim mantê-la nos níveis adequados obtidos a partir de fertilizantes convencionais, com economia destes fertilizantes. No entanto, com experiência ao longo de vários anos a gente tem observado que se consegue obter um ganho de produtividade em comparação ao fertilizante mineral. Isto principalmente em função dos efeitos da matéria orgânica no solo que é possível enxergar ao longo de alguns anos”.
Para Ronaldo Berton, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, sem dúvida, ele traz um benefício não só pelo seu conteúdo de nutrientes como também pela matéria orgânica que é formada durante a compostagem, extremamente benéfica tanto para o solo e como para planta. “A disponibilidade desse resíduo depende da quantidade tratada de esgoto. De uma maneira bem simples, cada habitante gera cerca de 0,15 litros de lodo centrifugado, com 20% de sólidos por dia. Uma cidade com cerca de um milhão de habitantes, deverá gerar em torno de 150 toneladas/ dia de lodo, quando estiver com 100% de seu esgoto sendo tratado”, descreve Berton. “Um dos pontos mais vantajosos do reuso do lodo proveniente do tratamento de esgoto é o aspecto ambiental. Quando o resíduo não é reutilizado, ele volta para os cursos d’água com altos níveis de substâncias que colaboram para a poluição. Já há algumas décadas que estamos estudando o efeito que esse lodo faz no solo. Ele chega a substituir 100% do nitrogênio mineral”, comenta o pesquisador do IAC.
Porém, ressalta o pesquisador que há restrições, por ser um resíduo de tratamento de esgoto urbano. “O aspecto negativo que ronda a tecnologia é a possibilidade — em caso de mau uso do resíduo — de contaminação do solo e dos mananciais com patógenos, metais pesados e compostos orgânicos persistentes, estes resultantes das reações com o cloro presente nas águas, por exemplo, com potencial cancerígeno”, diz o pesquisador.
O Instituto Agronômico pesquisa, desde 2000, os efeitos da aplicação do lodo no cultivo de pupunha, café e banana. Já na década de 80, o órgão analisava o resíduo como fonte de nutrientes e, portanto, melhorador da fertilidade do solo. O resíduo, quando empregado na quantidade recomendada, serve como fonte de nitrogênio e de fósforo, como mostram os estudos, sem diminuir a qualidade do fruto e sem prejuízo ambiental para o solo e as águas subterrâneas.
Processo do Fertilizante
O material que elevou o rendimento de alguns produtores é proveniente da Estação de Tratamento de Esgoto de Jundiaí, e vem do esgoto do vaso sanitário, da pia do banheiro, da pia da cozinha vem para o mesmo lugar. No primeiro momento, grades de retenção controlam o que entra no tubo de água e vem para tentar retirar muitas das coisas que não deveriam estar lá, como pedaço de papel, pedaço de plástico, resto de cigarro. “Geralmente o que vem mais é absorvente, preservativo, material que o pessoal não deveria jogar no vaso sanitário, acaba jogando e vem parar aqui”, aponta o engenheiro.
Depois, segue o fluxo onde é deixado em tanques, num processo chamado de decantação. A sujeira mais pesada vai para o fundo e a parte líquida, segue para outros tanques. Geralmente, todos têm aquela impressão de que bactéria faz mal pra nossa vida, mas nem sempre é assim. Nas denominadas lagoas aeradas, máquinas sopram minúsculas bolhas de ar no esgoto, promovendo grande oxigenação para auxiliar as bactérias a fazer a limpeza da água. Quanto mais ar, mais elas se reproduzem e consomem a sujeira, formando um lodo no fundo. Nas chamadas de áreas de decantação, o lodo deposita-se no fundo das lagoas e a água tratada, já sem a maior parte dos poluentes, é lançada no rio. “A água não é própria para beber, mas ela volta com condições muito melhores do que chegou. O esgoto sai com mais de noventa por cento de sua poluição removida”, garante o engenheiro.
O lodo retirado é misturado às podas urbanas picadas, geradas na cidade de Jundiaí, bagaço de cana-de-açúcar e cascas de eucalipto, sendo a mistura submetida à aeração por processo de revolvimento mecânico e a oxidação promovida por uma intensa atividade de microorganismos. Neste processo, devido à ocorrência de temperaturas acima de 55°C por mais de 30 dias, todo o material é higienizado, eliminando organismos causadores de doenças aos homens e animais, dando origem ao composto orgânico de lodo de esgoto.