No princípio era a garapa, o açúcar e a cachaça. Depois veio o álcool, e daí por diante outras soluções a mais para o reaproveitamento do bagaço da cana para a produção de energia, como em termelétricas, e ainda com a produção de álcool a partir de todo esse bagaço e da planta como um todo.
Os produtos extraídos da cana-de-açúcar vão se valorizando cada vez mais com o incremento de tecnologia, e com o apelo a fontes de energia renováveis e que agridam menos o meio ambiente. Este é o cenário que impulsiona a produção de uma das lavouras mais antigas do Brasil, e que atualmente requer melhores resultados em termos de cultivares mais produtivas, adaptadas a fatores de clima de solo regionais, que possuam um alto teor de sacarose e que sejam mais resistentes a doenças e pragas.
A soma de todas essas características é o norte para as pesquisas em melhoramento genético da cana no País, de acordo com Marcos Guimarães de Andrade Landell, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), órgão de pesquisa ligado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. “E além dessas características, que são essenciais à produção, há outros padrões que também são importantes a serem atingidos, como é o caso das qualidades biométricas da planta, relacionadas ao crescimento, porte, altura e diâmetro dos colmos”, acrescenta.
A razão para isso é simples: a gradual e inevitável mudança do corte manual para o corte mecânico da lavoura. Segundo Landell, a produção de uma variedade de cana que apresente um estágio de desenvolvimento uniforme, em termos de altura e diâmetro entre as canas, e que ainda garanta maior população de plantas por área poderá garantir um bom aproveitamento na hora da colheita. “Uma cana que emita maior número de colmos (ou talos), aumentará a eficiência na hora da colheita com as máquinas. Se ela não tiver essa capacidade de disseminação, a cana concorrerá com plantas invasoras na área”, explica o pesquisador do IAC. Além disso, uma planta que consiga se multiplicar mais por metro quadrado garantirá uma maior longevidade ao canavial, reduzindo-se os custos com reforma da área de cultivo de cana.
Diversidade resistente
Pelo Registro Nacional de Cultivares (RNC), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Brasil conta atualmente com cerca de 120 variedades de cana-de-açúcar, entre as espécies Saccharum spp. e a Saccharum offinarum L.
Ao longo da última década, foram 13 variedades lançadas pelo IAC. Um trabalho no campo de melhoramento para atender às necessidades das regiões produtoras do País.
Uma melhor gama de variedades para o cultivo reflete numa produção mais segura, com menos riscos de perdas, seja pelos efeitos climáticos como pela incidência de doenças e pragas novas na lavoura. “A exemplo da doença ferrugem-alaranjada, estávamos acompanhando ela desde a ocorrência na Austrália e depois na América Central”, destaca Landell. “A partir desse trabalho de monitoramento, íamos observando as variedades mais suscetíveis para que fosse evitado o plantio aqui. E foi justamente pelo fato de o Brasil possuir uma maior diversidade de plantas que ajudou, de certa forma, a promover uma resistência inicial à doença”.
E novas variedades estão por vir ainda este ano – mais duas, ou talvez três, que devem ser lançadas até julho. As plantas deverão beneficiar as regiões do Cerrado, que se encontram em processo de expansão da lavoura canavieira. Possuindo características de colheita de precoce-média (abril a setembro) e média-tardia (final de julho a final de outubro e início de novembro), além de bom desempenho agroindustrial, as variedades garantem maior resistência hídrica que possibilitará o melhor estabelecimento em regiões produtoras do Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, Tocantins, Maranhão e na porção oeste do Estado da Bahia – regiões que serviram de ensaio para os estudos do IAC, segundo Landell, e que sofrem com o déficit hídrico.
Da mitologia aos campos brasileiros
E não é só de instituições públicas que se vive a pesquisa em melhoramento genético da cana no País. A jovem empresa Canavialis, pertencente ao grupo multinacional Monsanto – este último, que atua na área de desenvolvimento em biotecnologia, lançou em setembro de 2009 a primeira variedade que beneficia os canaviais brasileiros, a CV Pégaso. De acordo com a mitologia grega, o pégaso é um cavalo alado que simboliza a imortalidade. É bem provável que a cultivar não garanta realmente uma lavoura eterna, mas é uma opção para ambientes de produção intermediários, com alta sanidade e produtividade, e para colheita na época precoce com o uso de maturadores, ou entre maio e junho, sob processo de maturação natural.
“A variedade chamou a atenção nas primeiras fases de seleção pelo ótimo aspecto visual”, atesta diretor-geral da Canavialis, Ivo Fouto. “Apesar de não ser uma variedade superprecoce, pode ser uma opção interessante para o início de safra das usinas devido a ótima resposta da cultivar a maturadores químicos”.
Além disso, Fouto destaca que a variedade tem demonstrado alta resistência às principais doenças, incluindo a ferrugem-alaranjada, e boa brotação de soqueira, inclusive na palha. Apresenta baixos índices de infestação de broca, e devido a aparente tolerância à seca, pode ser plantada em solos de baixa capacidade de retenção de água, com colheita programada, no máximo, na primeira quinzena de julho.
A variedade é a primeira dos mais de 50 materiais que se encontram em fase final de teste para diferentes maturações e regiões produtoras do País. De acordo com Fouto, a expectativa é que até 2012 mais de oito a dez novas variedades sejam liberadas para plantio comercial.
Derrubando a barreira do tempo
A jornada pela qual passa o melhoramento genético, assim como é observado em tantas outras culturas, é longa. Pode levar de dez a 12 anos. “Isso sem contar o período de aceitação e adoção pelo produtor, e isso leva mais tempo ainda”, frisa Landell. “Isso se deve ao fato de o produtor estar mais acostumado com as variedades que tinha por hábito cultivar, o que causa uma certa resistência quando há algo disposto no mercado”, explica.
O cruzamento convencional ainda é a ferramenta para o desenvolvimento das plantas – e vem funcionando adequadamente. A questão do tempo, segundo o pesquisador do IAC, se faz necessária para que haja uma melhor experimentação da planta, contemplando uma maior diversidade de ambientes, para assim garantir variedades adaptadas para grande parte das regiões produtoras no País. “Talvez, no futuro, com o uso da tecnologia de marcadores moleculares se possa diminuir esse tempo para seis a dez anos, já incluindo aí o período de aceitação e adoção por parte do produtor”, estima o pesquisador do IAC.
Diante dessa corrida para obtenção de materiais de qualidade produtiva e de sanidade, há uma outra que se desenvolve no sentido de poder agilizar o processo de disseminação dessas cultivares saídas dos laboratórios. É o caso do projeto de clonagem conduzido pelo Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste (Cetene), em Recife (PE).
A partir do projeto batizado “Cana de Meristema para o Nordeste”, o órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) disponibiliza gratuitamente a pequenos e médios produtores mudas sadias, novas, com qualidade de produção e alto teor de sacarose. O Mapa é o mantenedor dos recursos para o desenvolvimento desse projeto.
“Apesar de a cultura praticamente ter iniciado na Região Nordeste, ainda na época da colonização do País com os portugueses, é na Região Sudeste que há o maior destaque na produção sucroalcooleira, devido às condições favoráveis de clima e solo”, explica a coordenadora do Cetene, Andréa Baltar. “Aliado a isso as variedades que mais se cultivam por aqui são muito antigas e isso prejudica a produtividade. Nossa intenção é justamente poder incentivar a renovação dos canaviais, garantindo assim toneladas por hectare”.
A partir de duas áreas, uma em Catende (PE) com 350 hectares (ha) e outra em Ribeirão (PE) com 100 ha, oito estufas localizadas na Zona da Mata do Estado, e um laboratório onde são feitos os clones, chamado de Biofábrica, o projeto já atendeu cerca de quatro mil produtores pernambucanos. Também devem ser beneficiados agricultores dos Estados da Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte. A capacidade de produção gira atualmente em cerca de 1,5 milhão de mudas por mês.
A técnica de multiplicação dos materiais genéticos consiste na micropropagação, ou propagação ‘in vitro’. “Seria como estivéssemos fazendo uma fotocópia de uma planta, e como isso é feito em laboratório conseguimos verticalizar a produção”, destaca Baltar. Lavouras que antes registravam uma produtividade média de 40 toneladas por hectare (t/ha) podem chegar a 100 t/ha. No mínimo, é estimado um aumento de 30% na produtividade da lavoura nordestina.
As opções vindas do IAC
IACSP95-3028. Variedade com maturação hiperprecoce para iniciar a safra do Centro-Sul na primeira quinzena de abril, apresentando boa brotação de soqueira, bom perfilhamento e fechamento de entrelinhas, ausência de florescimento, resistente às principais doenças, hábito decumbente, sendo indicada para ambientes médios a desfavoráveis. Recomendada a colheita para a safra de outono e início de inverno (abril a junho).
IACSP93-2060. Variedade com maturação precoce com boa adaptação à colheita mecânica, apresentando boa produtividade agrícola ao longo dos cortes, maturação a partir de final de abril até agosto, destacando-se em ambientes favoráveis. Em relação às principais doenças, apresenta, de maneira geral, boa resistência. Recomendada a colheita para a safra de outono e início de inverno (maio a julho).
IAC91-1099. Variedade com boa adaptação para colheita mecânica crua, porte muito ereto, maturação média-tardia, altíssima produtividade agrícola, sendo indicada para ambientes mais favoráveis, apresentando excelente soca com ótimo perfilhamento e manutenção da produtividade em cortes avançados e ótimo fechamento de entrelinhas. Recomendada a colheita para a safra de fim de outono até o meio da primavera (julho a outubro).
IACSP95-5000. Produção agrícola muito alta, indicada para ambientes favoráveis, porte muito ereto, ótima brotação de soqueira, apresentando bom perfilhamento e fechamento de entrelinhas, não apresentando tombamento e florescimento, e ainda apresentando resistência as principais doenças. Recomendada a colheita para a safra de fim de outono até o meio da primavera (julho a outubro).
Ferrugem-alaranjada da cana
Conhecida desde 1890, a doença mereceu as manchetes, a partir de 2000, quando o ataque à variedade Q124 resultou em perdas significativas nos canaviais da Austrália. Nos anos de 2007 e 2008 foi identificada nos EUA, México, Panamá, Guatemala, Nicarágua, Costa Rica e Jamaica. Identificada no Brasil, especificamente em Araraquara (SP), a partir de um alerta emitido por um grupo de pesquisadores autônomos no dia 7 de dezembro de 2009, a doença segue sob monitoramento pelo Departamento de Sanidade Vegetal (DSV) do Mapa. Ela é causada pelo fungo Puccinia kuehnii (W. Krüger) E.J. Butler e pode ser confundida com a ferrugem-comum, ou ferrugem-marrom, causada por Puccinia melanocephala. P. kuehnii ataca as folhas que passam a exibir sintomas de pústulas de ferrugem mais alaranjadas, podendo evoluir para necroses foliares. Ocorre durante o verão úmido e outono, e pode atacar a lavoura da metade do ciclo até a fase de pré-maturação da cana. O patógeno se desenvolve bem em temperaturas que vão de 17°C a 24°C, com a germinação de esporos. A alta umidade relativa, acima de 97%, também favorece a germinação dos esporos do fungo.
Basicamente, o controle é feito com o plantio de cultivares resistentes, pois, o uso de fungicidas não é prático e nem econômico. Com base nas observações realizadas até agora, verifica-se que a variedade RB72454 mostra-se suscetível à doença, apresentando nota máxima de ocorrência de pústulas nas folhas. As variedades SP89-1115, SP 71-799, RB855156, RB867515 e RB 735272 apresentam reação intermediária a suscetível.