Um conjunto de evidências anatômicas, fisiológicas, comportamentais, evolutivas e farmacológicas indica que os peixes são capazes de sentir dor, medo e outros sentimentos de maneira similar aos demais vertebrados, e que a sua percepção e habilidades cognitivas muitas vezes correspondem, ou excedem, a de outros vertebrados. Essa é a posição de 41 pesquisadores – biólogos, médicos veterinários e zootecnistas –, que assinam a Declaração de Senciência em Peixes, documento editado pela Alianima e entregue ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
“Compreender a capacidade de um peixe de sentir dor e sofrimento é particularmente importante em relação à forma como eles são tratados”, observa Patrycia Sato, médica veterinária e presidente da Alianima, organização que atua desde 2019 na implementação de políticas de bem-estar animal na cadeia alimentícia no Brasil. “O desafio é conscientizar a população e direcionar ações relativas ao bem-estar desses seres em todas as esferas, educacional, científica, legislativa ou produtiva”, completa Patrycia.
Na Declaração, os cientistas afirmam que ‘os peixes têm boa memória, vivem em comunidades sociais complexas, onde acompanham os demais indivíduos e podem aprender uns com os outros. (…) Além disso, as estruturas do cérebro que transmitem a dor em outros vertebrados também são encontradas em peixes, indicando que eles são capazes de sentir e reagir conscientemente a diferentes estímulos potencialmente nocivos do ambiente, geralmente acompanhados por uma resposta reflexa de retirada, favorecendo a sua sobrevivência.’
De acordo com Patrycia, o reconhecimento de que os peixes são seres sencientes gera a necessidade de se incorporar a preocupação com seu bem-estar. “A ideia é criar uma estrutura normativa que permita a adoção de padrões de qualidade de vida para os peixes”, afirma a presidente da Alianima. Além disso, o documento – que segue as mesmas bases da Declaração de Cambridge sobre a Consciência dos Animais e da Declaração de Curitiba – destaca que o diagnóstico de um grau de bem-estar muito baixo também interfere na qualidade final do produto e está associado a perdas econômicas para o produtor, uma vez que pode aumentar a mortalidade de peixes, interferir no ganho de peso e prejudicar a saúde desses animais.
Os peixes estão entre os animais mais utilizados pelo homem, seja para consumo, pesquisa científica, recreação ou como animais de estimação. Cerca de 1,5 trilhão de peixes são capturados na natureza e até 167 bilhões são cultivados para consumo humano a cada ano em todo o mundo. Esse número é cerca de 25 vezes maior que todos os animais terrestres abatidos juntos, o que corresponde a aproximadamente 73 bilhões.
Para o médico veterinário Daniel Santiago Riquelme, especialista em comportamento e bem-estar de peixes, signatário do documento, o reconhecimento de que os peixes são capazes de sentir dor e emoções é base para avançar nesta agenda. “A partir desse reconhecimento, é importante evitar situações que causem sofrimento em diferentes cenários no uso de peixes. Não há, por exemplo, regulamentação brasileira acerca do abate humanitário desses animais. Muitos frigoríficos utilizam a hipotermia em mistura de água e gelo para insensibilização, mas tal método não induz inconsciência, apenas paralisia. Portanto, a normativa deve ser atualizada para regulamentar alternativas humanitárias aos peixes também”, defende Riquelme.
“Em relação à capacidade de sentir, a ciência já demonstrou que a diferença entre peixes e outros animais não é tão grande quanto a maioria das pessoas assume”, observa Murilo Henrique Quintiliano, zootecnista e diretor executivo da FAI Farms no Brasil, instituição que atua na implantação de boas práticas agropecuárias. “Do ponto de vista técnico, a variedade de espécies e as particularidades que cada uma traz em sua fisiologia e comportamento representam um desafio para a adoção das medidas de bem-estar. Por isso, o trabalho em parceria com as cadeias de suprimento, em especial, as de espécies cultivadas, é de extrema importância para a construção de um sistema de produção eficiente, que valorize o bem-estar de todos os seres, refletindo em melhorias na qualidade de vida e na produtividade”, conclui o especialista, também signatário da Declaração de Senciência em Peixes.
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