Por Murilo Aires* – As cooperativas são organizações de importância histórica no desenvolvimento econômico brasileiro. Com sua lógica distributiva e democrática, colocam-se no centro de grandes cadeias produtivas, conduzindo a economia de determinados setores e regiões. A dinâmica não especulativa, a regra da livre adesão, entre outros fatores, tornaram a cooperativa modelo de governança de sucesso em áreas-chave no Brasil, como saúde, crédito e agroindústria.
Embora desenvolvam atividade econômica organizada para produção e oferta de bens e serviços (definição legal do empresário), as cooperativas foram expressamente afastadas do ramo das sociedades empresárias no Código Civil brasileiro, situação que gera polêmica em torno da permissão ou não do pedido de recuperação judicial ou falência para esse modelo de negócio. A recém-reformada Lei de Falências e Recuperação de Empresas (11.101/2005), adotando a sistemática do Código Civil, classifica como legitimados a se utilizarem de seus instrumentos o empresário e a sociedade empresária, o que não inclui a cooperativa.
No entanto, o crescimento das cooperativas nas últimas décadas expandiu e diversificou o conjunto de interessados em suas atividades, de modo que uma eventual crise financeira e insolvência passaram a gerar grande impacto socioeconômico, justificando um tratamento jurídico que privilegie sua preservação. Algumas cooperativas não representam mais o modelo estritamente pessoal e comunitário aparentemente vislumbrado pela legislação vigente, sendo que algumas contam com centenas de milhares de cooperados. Atualmente, o estado de insolvência da cooperativa tende a levar a medidas drásticas, como a transformação de seu tipo societário para o enquadramento legal e a sua liquidação, quando não a sua dissolução irregular, abandonando-se suas atividades e gerando grave prejuízo aos envolvidos.
É fato que as cooperativas são dotadas de peculiaridades que merecem observação específica em eventual processo falimentar ou recuperacional. As cooperativas de trabalho, por exemplo, remuneram seus cooperados pelo trabalho desempenhado por meio do ato cooperativo. A classificação de créditos na recuperação judicial e na falência tende a privilegiar créditos trabalhistas (geralmente oriundos de vínculo empregatício) e tratar com pouca prioridade créditos de sócios. O tratamento de créditos de cooperados aplicados nessa ocasião e o peso de seus votos em uma assembleia geral de credores são pontos desafiadores.
A ausência de soluções legislativas tem sido pressionada pela já antiga percepção da necessidade de evolução no tema, que conta com os anseios do movimento cooperativista e que já encontrou respaldo no Poder Judiciário, com o deferimento, em primeiro grau, da recuperação judicial da Unimed Petrópolis, em 2018, e, recentemente, da Unimed Manaus, que são cooperativas de trabalho médico.
Aparentemente, a nova lei chegou a permitir o pedido de recuperação judicial pelas cooperativas, sobretudo por aquelas envolvidas no setor da saúde, na controversa e deslocada parte final do parágrafo 13 incluído no artigo 6º da Lei nº 11.101/05: “consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora do plano de assistência à saúde for cooperativa médica”. Mas a forma como foi feita essa inclusão (emenda incluída na revisão pelo Senado), sua redação e posição confusas, assim como a omissão sobre distinções relevantes do procedimento para as cooperativas tendem a gerar uma profunda insegurança jurídica.
A justificativa de sua inclusão pelo senador Eduardo Gomes (MDB – TO) considera que a recuperação judicial já seria possível às cooperativas, estando expressamente vedada apenas às cooperativas de crédito, compreensão essa que vai contra a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência na matéria.
O assunto é complexo, urgente e não é uma reivindicação exclusiva do cooperativismo, mas também de outras formas associativas não consideradas empresárias, como clubes de futebol e associações educacionais. Todavia, a oportunidade no ensejo da reforma substancial realizada parece ter sido perdida. Existem articulações entre os representantes do movimento cooperativista e do Poder Legislativo Federal por uma lei de recuperação judicial e falências específica a essas organizações, mas sem grandes iniciativas formais. Por outro lado, o debate gera novas propostas na Câmara dos Deputados, como o Projeto de Lei nº 1.262/2021, que altera a Lei de Recuperação de Empresas, ainda em fase bastante inicial. Proposta semelhante foi apresentada à Câmara dos Deputados em 2005, mas acabou arquivada em 2007.
A questão da insolvência das cooperativas deve ainda observar um longo percurso até seu devido tratamento jurídico, enquanto a alteração legislativa promovida deve apenas dar algum maior substrato jurídico a pedidos e decisões ao deferimento de recuperações judiciais às cooperativas, de modo que os conflitos entre as características dessas organizações e o regime geral ficarão a cargo das proposições dos advogados e das reações jurisprudenciais.
(*) Murilo Aires é advogado atuante na área de direito empresarial do escritório Dosso Toledo Advogados. É mestre em direito pela FDRP-USP e graduado em direito pela FCHS – Unesp Campus Franca.