Destaques Negócios

Técnicas de fermentação permitem produção artesanal de alimentos

Pelo menos 20 famílias de agricultores familiares que habitam a região da Serra das Pias, na zona rural de Palmeiras dos Índios, no agreste alagoano, já próximo à divisa com Pernambuco, receberam recentemente uma capacitação que poderá mudar definitivamente a maneira como produzem, desde 2011, uma espécie de vinho licoroso de jabuticabas.

Através da Cooperativa Mista de Produção e Comercialização Camponesa do Estado de Alagoas (COOPCAM), minioficinas foram ministradas como parte da programação deum evento que recebeu o nome de “Circuito da Jabuticaba – Do campo ao vinho”. Para ministrar as capacitações, foi convidado o especialista em fermentação, Fernando Goldenstein Carvalhaes, fundador da Companhia dos Fermentados e professor da Escola Fermentare.

Goldenstein esteve em Alagoas através de uma articulação com o pesquisador Ricardo Elesbão, chefe adjunto da Embrapa Alimentos e Territórios. As instituições a que Fernando está vinculado fomentam o resgate, de maneira artesanal e natural, de técnicas antigas de produção de alimentos fermentados. “Na verdade, a jabuticaba não é nenhuma surpresa pra mim. Meu pai faz vinho de jabuticaba desde minha infância. Conheço há bastante tempo e é um produto que tenho muita familiaridade. E já fiz vinho, vinagre e mesmo conserva salgada com ela”, diz.

Ele destaca as propriedades organolépticas diferenciadas da jabuticaba, como um alto teor de açúcar e de tanino. Fernando assegura que isso provoca uma cor “arroxeada”, característica de alguns vinhos. “E a gente pode modular a maceração, o processo fermentativo, para trazer uma característica mais de um vinho rosê. Ou mesmo de um espumante, quase branco e seco, brut, pra um tipo de mercado. Ou podemos fazer uma vinho mais tânico, parecido com o bordô francês, com alto teor de tanino, bem tinto. Seco ou docinho, o que vai lembrar o vinho do porto, um vinho fortificado, com álcool, ou não. Tem infinitas possibilidades de se trabalhar com essa fruta maravilhosa brasileira”, comentou ele rapidamente à reportagem da Embrapa.

“Aqui já me apresentaram quatro variedades diferentes de jabuticaba. E de safra a safra, a gente tem diferenças no brix, que é a quantidade de açúcar, e está relacionado, principalmente, com o índice de chuvas. Quanto mais água cai, menos doce a jabuticaba fica. Interfere ainda na espessura da casca, e consequentemente na quantidade de tanino que produz”, detalha Goldenstein.

“O que estamos fazendo aqui é uma troca de saberes e experiências ainda muito preliminar. Eu preciso ter um primeiro retorno da comunidade, pra ver até aonde a gente vai. Ver pra onde o pessoal pretende vocacionar os produtos, quais os mercados que queremos alcançar. Não é um processo tão rápido”.

Reputação

João Flávio Veloso, chefe-geral da Embrapa Alimentos e Territórios, disse que ali tem o saber fazer dos produtos alimentares, que se confunde com a própria história da comunidade. “Nós estamos chegando para somar esforços com aquilo que a comunidade já vem fazendo há bastante tempo e com o trabalho que as outras instituições estão desenvolvendo. E entendemos que só uma construção coletiva desse tipo pode fazer com que um bom produto saia pronto, lá na frente, e que ele realmente tenha uma presença importante no mercado”.

Veloso faz uma avaliação do potencial agrícola dos jabuticabais da Serra das Pias. “Pelas idades das árvores aqui na serra, dá pra perceber que há uma ocupação centenária desses sítios pelas famílias dos agricultores”. Ele destaca a articulação de vários órgãos e entidades apoiando a iniciativa para criar valor nesses produtos, a partir da reputação que já existe localmente. “As mulheres, elas começaram a processar, industrializar, doces, inicialmente. E com isso facilitou a produção artesanal do vinho de jabuticaba, que era produzido mais para o consumo próprio nas festividades. Hoje esse fermentado vem conquistando mercados e seguramente vai se tornar uma fonte de renda muito interessante para essas pessoas e para a comunidade da Serra das Pias”, acrescenta o pesquisador.

Ele fala também sobre o desenvolvimento dos produtos que poderão ser processados a partir de agora. “É um produto que vai ser melhor compreendido com a vinda de pessoas que trabalham especificamente com a fermentação, pra nos ajudar a entender melhor o processo. Vai melhorar muito a qualidade desses produtos”, diz João Flávio.

O executivo da Embrapa em Alagoas destaca ainda a importância da articulação de instituições locais e de como a estatal pode colaborar no fomento dessa nova cadeia produtiva. “Com produtos locais, com vocações da região, buscando que isso gere renda para a comunidade, o que estamos vislumbrando é uma experiência muito rica aqui na Serra das Pias. Tem várias tecnologias que podem melhorar a produtividade das jabuticabas. Enriquecendo os pomares e aumentando a quantidade de plantas”,diz.

Veloso fala também de se reconhecer, nesse tipo de arranjo produtivo, a importância  daquilo que foi feito anteriormente, desde o início, pela própria comunidade. “Não é só uma questão de melhorar o negócio. A gente percebe que as pessoas ficam muito satisfeitas quando há um reconhecimento do trabalho que vem sendo feito ao longo de anos. Então isso que está acontecendo aqui é o reconhecimento de uma estratégia da comunidade, das pessoas, dos ancestrais que contribuíram para esse sucesso. É mais até do que apenas a questão econômica do produto. E sim um reconhecimento de uma experiência, de uma estratégia, de como que as pessoas pensam seu entorno, seus quintais. Então é muito gratificante que a gente possa dar esse retorno e que elas possam ficar felizes com as estratégias que foram adotadas há gerações atrás. Agricultura tem muito isso: ela modela, ela forma pessoas”, analisa.

Dos sítios para os mercados

A participação da equipe técnica da Embrapa Alimentos e Territórios no desenvolvimento dos novos produtos orgânicos e tradicionais oriundos do agreste de Alagoas faz parte dos objetivos centrais dessa nova Unidade de Pesquisa. “A ideia é que esse produto tradicional possa atingir padrões de mercado e que ele possa ter uma inclusão produtiva e mercadológica. Algo que venha ter um reconhecimento, uma certificação e uma marca. A Embrapa está à disposição dessas famílias produtoras. A gente está vendo outras questões tecnológicas, como a manutenção dessas plantas, a possibilidade de aumentar o plantio, para garantir que a gente tenha o produto final e também outras temáticas envolvidas com esse modelo de produção”, diz Ricardo Elesbão.

Mesmo remotamente, devido ao atual momento de pandemia em decorrência dos casos de contaminação pelo COVID-19, os pesquisadores da Embrapa continuarão acompanhando o desenvolvimento da iniciativa na Serra das Pias.

Marleide Oliveira da Silva é uma das agricultoras da região envolvida no projeto. Durante uma visita técnica recente que ela recebeu em seu sítio, agricultoira relatou que as plantas da sua área produzem 70 caixas de frutos por safra e que isso pode render cerca de 30 litros do vinho tradicional.  “A importância desse momento é que mais pessoas possam conhecer nossos produtos, que até então eram muito pouco conhecidos fora daqui. Pouca gente sabia que a gente produzia jabuticaba na serra”, diz.

Carlos Everaldo Silva da Costa, professor de Administração da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), falou de como nasceu o projeto. “É fruto de continuidade de minha tese de doutorado que trabalhei com as relações institucionais. Dentre as pesquisas, eu percebi que tinha esse produto como algo bem singular para a região. Ano passado saiu um edital e nós submetemos um projeto interdisciplinar, que envolvesse, para a jabuticaba, a possibilidade de juntar três áreas: engenharia química, pra trabalhar com a parte dos laboratórios e auxiliar no processo de produção. A contabilidade, que tem auxiliado nos custos de produção. E administração, pra tentar, a partir do produto pronto, como poderíamos alcançar e acessar o mercado”, relatou.

Costa destaca ainda que o projeto é uma excelente experiência no âmbito da extensão universitária. “Tem sido interessante esse processo para reconhecer, principalmente, essa troca de saberes. Que eles têm o saber próprio aqui da comunidade mais o saber da Universidade”.

Ele também faz uma projeção dos próximos passos. “A tendência agora é que como eles receberam a capacitação, é que eles comecem a incorporar a linguagem mais técnica e possam alcançar um patamar de maior qualidade nesse produto que tanto eles querem colocar no mercado. A tendência vai ser, cada vez mais, aproveitar a jabuticaba para produzir uma quantidade maior de vinho ou de outros produtos derivados da fruta”, comentou.

Arrancação de bandeiras

Vera Lúcia Félix de Brito é do grupo de produção de vinho. Suas jabuticabeiras estão produzindo há anos nos sítios da Serra Bonita, vizinha a da Pia. Ela contou que as primeiras degustações do vinho de jabuticaba nasceram na festa tradicional da sua comunidade, conhecida como “Arrancação de Bandeiras” e nas novenas. Ela diz que, no início, a produção caseira era de apenas 50 litros por família.

Sobre o evento promovido pela COOPCAM ela tem uma percepção particular: “O dia de hoje pra nós tem muita importância, mas muita importância mesmo. Por várias razões. A primeira é que nós estamos tirando o vinho de jabuticaba das casas para o comércio. Isso foi iniciado há uns dois, três anos. No ano passado a gente começou a produzir coletivamente. Chegamos a produzir quase 800 litros. A gente até levava pra feira, mas cada um tinha o seu. E desta vez a gente vai continuar produzindo, mas como cooperativa”, revela Vera Lúcia.

Ela comentou ainda sobre a articulação interinstitucional para tornar o vinho um produto viável para a comercialização mais ampla. “O dia de hoje, ele é importante porque é o dia de a gente fazer a sociedade conhecer o nosso trabalho, o nosso produto. E também por causa desse número de organizações, governamentais ou não, que aceitaram o desafio e estão nos ajudando a botar o vinho da jabuticaba no mercado”, comenta.

Atualmente são apenas 54 cooperados com um grupo de produção do vinho que mobiliza apenas 18 pessoas. Vera Lúcia também reconhece a importância da adoção de novas tecnologias para aprimoramento da qualidade do produto. “Produzir vinho, mas com mais de técnicas que garantam tempo de fermentação. Por que a gente faz, passa dois, três anos, pro nosso consumo, Mas pro comércio, a gente precisa de uma garantia. E também pra aprender questões como o teor alcoólico. O teor de açúcar que a fruta tem”, acrescentou. Ela disse que a expectativa do grupo é de que o vinho possa passar a ser conhecido em breve para além do âmbito alternativo do movimento agroecológico.

“A gente está acompanhando mais a parte da certificação, que são as unidades produtivas. Adequadas ao sistema de produção orgânica, para que esse produto final seja um vinho e tenha um selo diferencial de origem, atestando ao consumidor que foi produzido conforme as normas, as regras de produção orgânica”, diz Leandro Benatto, assessor técnico da Associação dos Agricultores Alternativos (AAGRA), outro ator envolvido no arranjo de instituições que apoiam a iniciativa das famílias agricultoras da Serra da Pia.

Ele informa que o vinho foi desenvolvido numa perspectiva mais familiar, festiva, que começou a ganhar corpo e demanda de fora, a partir dos eventos estaduais e nacionais do movimento de agricultores agroecológicos. “Daí vimos a viabilidade de inserir esse produto no projeto Tecendo Autonomia Alimentar para a Vida, que é um projeto de certificação orgânica”, relembra.

“Por outro lado, cada ator social que está aqui posto como Embrapa, SEBRAE e o próprio MAPA, que é base territorial aqui da associação, têm suas diferentes contribuições. A gente entende que essa conjuntura de forças poderá fortalecer esse processo para desenvolver um produto que seja tipicamente alagoano, da Serra das Pias, que tem identificação de origem. Um produto diferenciado que vai agregar também essa história da comunidade, gerando renda e um produto novo no mercado”, reforça Leandro.

Ele diz que os agricultores envolvidos estão muito entusiasmados com as possibilidades de adquirir novos conhecimentos e explorar mercado ainda mais promissores. “O que a gente observa é que existe grande curiosidade para entender tecnicamente como é o processo do vinho. Não se sabe ainda que produto novo vai ser gerado a partir daqui”, acrescenta.

Umbu e muito mais

“O potencial de produtos locais, que a gente chamaria de valorização da diversidade, tem várias opções, como a jabuticaba, o umbu e também o oricuri. O umbu é muito comum nessa região do agreste de Alagoas e que pode produzir vinagres, vinhos, geleias, polpas e outros produtos. A Planta industrial da cooperativa poderá se adequar a uma produção mista, além da jabuticaba, que é um produto de safra, para que não fique ociosa no restante do ano. Então, é importante pensarmos em outras frutas que posam dar dinâmica à cooperativa nos demais períodos ao longo do ano”,  pondera o ativista.

Fernando Goldenstein também reconhece o potencial do umbu. “Dá pra gente fazer diferentes produtos, inclusive produtos salgados. Aqui a gente tá ensinando a fazer aqui uma versão brasileira de uma conserva japonesa, que se chama ‘umeboshi’. Que é feita a partir de uma ameixa bem ácida, muito parecida com umbu. Daí nós criamos o ‘umbuboshi’, que deve ficar pronto em um ou dois meses. E que vai ser uma iguaria e que pode ser viável nos mercados de São Paulo e até internacionais”.

Outra luta das comunidades produtoras de jabuticaba da Serra das Pinhas é cobrar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que insira a fruta que nasce nos troncos nos próximos sensos agrícolas para a mensuração de localização das produções.

One Response

  1. Gostaria de ter mais informações sobre a fermentação do vinho de jabuticaba pois meu pai já tem 150 plantas próximo e mais Umas 300 plantas ainda sem produzir

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *