Para mitigar os efeitos da seca, o Canal do Sertão chega ao semiárido de Alagoas e promete mudar o cenário cinzento de prejuízos e morte da agricultura e da pecuária na região.
“É por isso que pidimo proteção a vosmicê (…). Pois doutô dos vinte Estado temos oito sem chovê. Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cume/ Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage. Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage/ Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage. Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage (…)”. O trecho da letra da música “Vozes da Seca”, do compositor Zé Dantas e que fez sucesso na voz de Luiz Gonzaga, escancarou há mais de 60 anos a realidade do sertão nordestino.
Mesmo composta há tantos anos, parece que foi hoje que esta melodia foi escrita. A situação climática que abate a região do semiárido brasileiro, a seca, em 2013 infortuna de novo a Região Nordeste do País e retrata ainda uma das piores estiagens em cinco décadas. “Sem chuvas, as secas são sempre iguais, o que muda é sua intensidade”, afirma o agricultor alagoano Cícero de Barros de Souza.
No início de abril do ano passado, a conta era de quase nove meses sem chuvas no Polígono das Secas, uma área de 974,7 mil quilômetros quadrados que envolvem boa parte de oito Estados do nordeste, um pedaço de Minas Gerais, do Espírito Santo e Maranhão. Em março deste ano, só em Pernambuco, dados da Secretaria da Casa Militar do Estado apontaram que 1,3 milhão de pessoas estavam sofrendo com a estiagem. Dos 158 municípios pernambucanos, 132 decretaram estado de emergência – dos quais 126 tiveram essa condição reconhecida pelo Ministério da Integração Nacional. Nessa região, os agricultores perderam boa parte de suas plantações de milho, feijão e mandioca e, principalmente, inúmeras cabeças de gado. “A seca que castiga o homem também o faz com os animais. Há sofrimento para todos nesta época”, diz o agricultor, que até então sobrevive com o Bolsa Família, auxílio de renda do governo para as famílias mais pobres.
No sertão devastado pela seca, é a água que determina a sobrevivência dos bichos, das plantas e o sofrimento dos homens. Mas, no sertão alagoano, para aliviar tanta dor um pequeno rastro verde corta a paisagem esturricada pelo sol. É o plantio de forrageiras que sobrevivem lá, graças às águas que vem do canal de concreto batizado de “Canal do Sertão”. O plantio, na propriedade Sítio Poços Salgados – situado no município Olho D’Água do Casado, a 272 quilômetros de Maceió (AL) – e que pertence ao agricultor Cícero de Barros de Souza, é irrigado e a água está disponível há menos de 20 metros deste canal.
Capim, milho, palma, sorgo e até cana-de-açúcar estão entre as plantações que brotam e vinga na terra para a alimentação do gado. A propriedade do agricultor familiar foi escolhida para ser a primeira unidade demonstrativa irrigada com água do canal. “E desde o final de janeiro, foram feitos os primeiros cultivos e que agora já é possível ver o resultado”, afirma Souza.
O agricultor conta que devido à seca, muitos produtores venderam seu rebanho, para não morrerem de fome, ou para comprar ração, para aqueles que restaram. “Fui um deles. Agora, com o verde brotando já dá para sonhar em ter novamente algumas vaquinhas para produzir leite”, diz.
“Há mais 20 anos sonhávamos com esse projeto para mudar a triste realidade de esmola e proporcionar ao sertanejo uma vida digna. O Canal do Sertão veio para ajudar a combater os efeitos da seca prolongada. Ele tem o poder de transformação socioeconômica, que já estamos vemos acontecer”, afirma José Marinho Júnior, secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário (Seagri) de Alagoas.
Segundo ele, estão confirmadas, com recursos próprios do Estado, por determinação do governador alagoano, Teotônio Vilela, 50 unidades de irrigação, de um hectare cada uma delas, sendo 20 unidades com irrigação por gotejamento e 30 por miniaspersão. “Cada uma custará algo em torno de R$ 10 mil. Com isso, garantimos alimento para os animais e, assim, incentivamos a produção de leite, entre outras atividades.”
Marinho Júnior afirma que na propriedade modelo já foi até implantada uma pequena horta, em sistema de mandalas. O princípio simples é o de consorciar o plantio de hortaliças à criação de galinhas. “O importante desse projeto no entorno do Canal é a possibilidade de irrigação para produzir alimento o ano inteiro, tanto para o gado quanto para as famílias”, afirma.
Neste modelo, cada agricultor que receber um kit para produção de forrageiras irrigadas no entorno do Canal do Sertão, também receberá um kit para uma unidade de Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS), no formato de uma mandala, com a mesma metodologia. Cada unidade PAIS terá 12 metros de raio e as culturas são plantadas de forma circular e, ao centro, em geral, eles montam um pequeno galinheiro para criação de galinha caipira.
Água e leite em abundância
O conceito do canal é muito simples. A água é bombeada até uma caixa e chega às plantações por gravidade. O sistema de irrigação é por gotejamento. “Parece milagre, mas é uma realidade. Com água a gente muda essa paisagem”, diz o agricultor. A captação de água que o abastece o canal é feita por parte da bacia hidrográfica do Rio São Francisco, desde o Lago do Moxotó, no município de Delmiro Gouveia, próximo à Usina Apolônio Sales, até as imediações de Arapiraca, numa extensão de 250 quilômetros. Com a força das bombas instaladas na estação elevatória, a água é conduzida por uma tubulação subterrânea até a essa grande caixa de água – a caixa de transição – que armazena e envia o líquido para o início do canal.
O Canal do Sertão é construído predominantemente em formato trapezoidal, com altura de 3,3 metros, largura inferior de 5,3 metros e superior de 15,2 metros. Para evitar acidentes com pessoas e animais, toda a extensão da obra foi protegida com uma cerca que reserva uma faixa de segurança de 100 metros até a margem do canal. “Os primeiros 65 quilômetros já estão sendo fundamentais para as ações emergenciais de combate à seca no Sertão. A água facilita, por exemplo, o abastecimento de carros-pipas e o uso difuso da água, por meio de bombas flutuantes utilizadas pelo comitê de enfrentamento à seca”, afirma Marco Fireman, secretário de Infraestrutura do Estado de Alagoas. De acordo com ele, atualmente, cerca de 10 mil sertanejos já estão sendo beneficiadas. Quando os 250 quilômetros estiverem prontos, o canal beneficiará 42 municípios e mais de um milhão de alagoanos. Os projetos dos dois primeiros perímetros de irrigação do Canal já estão sendo licitados pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).
Fireman diz que o Canal do Sertão está inserido no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal. Cerca de R$ 1 bilhão já foram investidos no empreendimento, incluindo a contrapartida do governo estadual na ordem de R$ 100 milhões. A presidente Dilma Rousseff, que esteve em Alagoas, no dia 12 de março, para entregar os primeiros 65 quilômetros da obra, no município de Água Branca, garantiu investimentos de mais R$ 1,1 bilhão para a construção do canal até o quilômetro 122, por meio do PAC.
Os produtores de leite vinculados a cooperativas e associações que estão em áreas distantes dos primeiros 65 quilômetros do Canal do Sertão estão esperançosos quanto às mudanças que o empreendimento vai proporcionar. Segundo Aldemar Monteiro, presidente da Cooperativa de Produção Leiteira de Alagoas, a intenção é o fortalecimento da produção da agricultura familiar por meio do Programa do Leite, coordenado pela Seagri, que faz parte de um convênio entre o Governo do Estado e governo Federal e que gera renda para cerca de três mil pequenos produtores de leite. A medida ajudará reduzir os custos que os agricultores têm para manter esses animais até a idade adulta, quando começam a se reproduzir e a fornecer leite.
Para o secretário de agricultura, a ideia é ir além deste programa, implantado em Craíbas, no Agreste de Alagoas. Ele conta que cerca de 750 produtores, no semiárido já estavam investindo em melhoramento genético e nas técnicas de plantio de forrageiras, o que os fortaleceram em meio à seca que atingiu a região. “Com isso, o nosso povo sofreu bem menos. Tínhamos um estoque bom de forragem e a mortalidade dos animais foi bem menor. Já contabilizamos que cerca de quatro mil animais vieram do Estado de Pernambuco, para tentar sobreviver por aqui”, revela Marinho Júnior.
Durante a inauguração do primeiro trecho da obra, o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, afirmou que o canal levou esperança aos sertanejos. “Estamos construindo um Nordeste que não quer esmola, mas sim respeito e atenção”, disse. A água que vem do Rio São Francisco deve melhorar a vida de agricultores e criadores de animais que sofrem as consequências da seca. O importante é tornar todas essas tecnologias acessíveis às famílias do sertão. Talvez a canção, “Vozes da Seca” seja apenas lembrada com alegria de sua última estrofe. “‘Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão/ Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!/ Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão/ Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos’”.