Agricultura

Cana gaúcha: um produto “tri-legal”

Pesquisadores apostam na produção em larga escala de cana-de-açúcar no Rio Grande do Sul. Recentemente, eles lançaram mais variedades, resistentes ao frio e à seca, estresses que atingem grande parte do território gaúcho.

Na propriedade do agricultor Denei Martini, na cidade de Formigueiro, distante a 294 quilômetros da capital Porto Alegre (RS), há um canavial que atinge aproximadamente cinco hectares. Ao contrário dos demais da região, Martini optou pelo cultivo orgânico (utilizando-se de produtos adequados ao manejo, realizando o corte manual da cana-de-açúcar e o uso do bagaço para a fabricação de fertilizantes que são aproveitados nos demais cultivos da propriedade). Toda a cana que o agricultor planta é destinada para a produção de cachaça, melaço, açúcar mascavo e silagem para criação de alguns animais.

Assim como nas demais pequenas propriedades do município, localizado na região noroeste do Estado, a cultura da cana-de-açúcar é a que dá maior rendimento financeiro. E foi para incentivar cada vez mais esse cultivo, dominado em alguns municípios do Rio Grande do Sul pela agricultura familiar, e apostar também na cultura não somente para a produção de melaço e cachaça – uma já que o Estado é o segundo maior produtor de destilado do País, com 1.500 alambiques – pesquisadores se uniram para obter novas variedades com capacidade produtiva para o mercado do etanol. “Juntos, as instituições começaram a estudar variedades mais resistentes ao frio e à seca, estresses que atingem grande parte do território gaúcho, adaptando formas de manejo e criando uma logística para fazer com que o Estado contasse com um sistema de produção da planta”, afirma Sérgio Delmar dos Anjos e Silva, pesquisador da Embrapa Clima Temperado, localizada em Pelotas (RS).

Após cinco anos de experimentações a campo, no mês de novembro, a Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (Ridesa) e a Embrapa Clima Temperado apresentaram durante o Simpósio Estadual da Agroenergia e da IV Reunião Técnica de Agroenergia (RS), que aconteceu em Porto Alegre (RS), o lançamento de nove cultivares, que vieram confirmar a possibilidade de cultivo. “O Estado que não tinha variedades testadas, agora, possui indicações de materiais precoces e de ciclo médio/tardio”, explicou Silva, durante o evento. “No Sul, tanto o frio como a seca podem prejudicar a cultura. Para isso, estamos desenvolvendo materiais geneticamente modificados que criem maior resistência a esses estresses”, justificou Hugo Bruno Molinari, pesquisador da Embrapa Agroenergia (Brasília/DF), durante o Simpósio.

A ideia é reproduzir no Rio Grande do Sul produtividades médias similares a de Estados como São Paulo e Paraná. A iniciativa dos pesquisadores veio por meio dos exemplos de outros lugares no mundo como os Estados Unidos, a Austrália e a África do Sul.

Silva explica que as variedades RB (uma das mais cultivadas no País), apresentadas durante o Simpósio, são voltadas à produção de álcool e durante os testes mostraram que possuem média e alta produtividade agrícola, condições regulares em situações de estresse por frio, boa sanidade vegetal, colheita em início e meio de safra com elevada riqueza e crescimento rápido. “Elas apresentaram excelente produtividade em qualidade e riqueza de colmo e de açúcar”, explica o pesquisador.

Durante os testes foram realizadas 22 colheitas, com três cortes, entre as safras de 2010 a 2012. Os municípios gaúchos que participaram da pesquisa foram: Santa Rosa, Erechim, São Luiz Gonzaga, Jaguari, São Borja, Porto Xavier, Salto do Jacuí, Santa Maria, Pelotas, Viamão e Caxias do Sul. A Embrapa mostrou ainda um comparativo de crescimento de produção entre as cultivares já conhecidas – uma média de 34 toneladas/ha – e as testadas, que demonstraram uma produção média de 96 toneladas/ha, nos três anos de experimentação. “As variedades obtiveram média geral de 23° a 24° brix. Elas devem ficar entre 80 a 100 toneladas hectares ao ano com uma boa quantidade de açúcar. Um fato positivo para as regiões mais frias é que, por conta do estresse, existe um maior acúmulo do açúcar”.

Ele também explica que o outro elemento importante é a apresentação de períodos longos de horas luz. “A luz é o fator principal ao favorecer a conversão de biomassa das plantas e permitir que as variedades tenham uma boa tolerância às condições climáticas”, afirma.

Atualmente, o Estado tem uma produção de 37 mil ha (hectares) de cana-de-açúcar, segundo aponta a Embrapa Clima Temperado. “Com o lançamento das novas cultivares é possível que tenhamos dentro de cinco a 10 anos, cerca de 300 mil ha dedicados à cultura”, diz. Desta forma, os gaúchos passam a ser foco de atenção para inserir-se no mercado do etanol, visto que as condições climáticas foram enfatizadas como não sendo entraves para o cultivo. “Se pensávamos que as geadas seriam um impedimento para implementação da cultura, investigamos cultivares tolerantes ao frio e ao déficit hídrico e concluímos, entre outras condições, que o clima do Rio Grande do Sul é, sim, favorável”.

Atualmente, há pequenas e médias usinas em pleno funcionamento no Estado. “Porém, há uma previsão de uma instalação de uma grande usina, em 2013, e mais duas estão em projeto. O Estado despertou o interesse do setor, por causa do zoneamento e a produção regionalizada”, diz.

Pesquisadores da Ridesa, que foi inicialmente instituída por meio de convênio firmado entre sete universidades federais (UFPR, UFSCar, UFV, UFRRJ, UFS, UFAL e UFRPE), estão trabalhando com variedades de ciclo muito mais curto do que o normal, já que a cana tem grande dificuldade de crescer durante o inverno. “Em parceria com as universidades temos dois projetos para avaliar 15 mil plantas nas regiões testadas no Estado que demonstrem resistências a frios e à seca”, afirma.

A assinatura do convênio e a indicação de cultivares de cana representam um marco simbólico para a qualificação da produção de etanol no Estado gaúcho. O objetivo da pesquisa é criar todo um complexo para a produção da cana no Rio Grande do Sul. Hoje, o Estado produz apenas 2% do álcool combustível utilizado, beneficiado na única usina gaúcha, a Coopercana, em Porto Xavier, a 570 quilômetros da capital, Porto Alegre.

Em outras frentes

Além das universidades, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), empresa de pesquisa em cana-de-açúcar, e a Embrapa assinaram um acordo para pesquisas no setor canavieiro, visando principalmente a produção de variedades destinada ao Rio Grande do Sul. “Em grande maioria, o Estado ainda utiliza variedades que são plantadas na Região Sudeste do País. Mas, o foco do trabalho é justamente realizar estudos direcionados para aquele Estado”, afirma Jorge Luis Donzelli, coordenador de P&D do Programa de Agronomia do CTC.

De acordo com ele, em 2005, começou um estudo de zoneamento. “A partir daí, a deficiência do Estado que ainda mantém um nível intermediário de produção quanto comparada ao Estado de São Paulo, por exemplo, pode ser suprida. As novas variedades podem ajudar neste processo”, diz. “Até pouco tempo, o mercado apontava a possibilidade de plantação de soja, que se concentrava no Sul, no Centro-Oeste do País. Porque não podemos apostas em novas variedades de cana no Rio Grande do Sul”, diz.

“Ao ver a questão da aptidão, o solo, o clima, a declividade, as novas variedades e as tecnologias agrícolas, com o manejo podem modificar isso. Nem mesmo o frio gaúcho é problemático para o cultivo. Aqui, o frio faz o papel da chuva na hora de inibir o crescimento da planta e de fomentar a produção de açúcar. Basta apostar em variedades mais resistentes às baixas temperaturas”, explica.

Atualmente, o CTC disponibiliza para os produtores no Sul, o CTC 2, CTC 4, CTC 15 (que tem resistência a seca), CTC 17 e 20. Há previsto o CTC 25. Depois do tão aguardado zoneamento da cana-de-açúcar para o Rio Grande do Sul, a hora é de arregaçar as mangas e mostrar ao mercado variedades que se adaptem ao clima e solo gaúcho. Os especialistas não têm dúvidas de que a produção gaúcha tem tudo para ser competitiva com a do Sudeste.

A portaria que regulamentou o zoneamento no Estado liberou 212 municípios para plantar cana. “A aposta deve ser em pequenas e médias propriedades e usinas também de médio porte, localizadas a no máximo 50 quilômetros da lavoura. Nossa estrutura fundiária não comporta as grandes propriedades como as paulistas”, diz Donzelli.

Produção no Estado

De acordo com a Embrapa Clima Temperado, o Rio Grande do Sul tem passado, nos últimos anos, por períodos longos de déficit hídrico e, neste contexto, a cana-de-açúcar funciona como cultura estratégica, pois serve para alimentação animal e para a confecção de produtos artesanais, como a cachaça, que complementam bastante a renda dos produtores.

A cana é hoje uma cultura que contribui muito para a sustentabilidade da agricultura familiar no Rio Grande do Sul, seja diretamente pelo produto ou como alimentação animal, como é o caso de pequenos agricultores como Denei Martini. O principal desafio enfrentado pelos produtores de cana é o de conseguir uma estabilidade maior de produção e, junto com o trabalho desempenhado pela pesquisa, o de se obterem variedades mais adaptadas ao clima da região. Este último aspecto já vem sendo identificado em resultados preliminares, que apontam a existência de materiais muito promissores. O que provocará uma grande mudança na vida de pequenos e médios produtores, como Martini.

Convênio de cooperação

O lançamento das cultivares foi fortalecido pela assinatura de convênio de cooperação técnica firmado entre a Ridesa, representada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Embrapa, por meio da unidade de pesquisa Clima Temperado, de Pelotas (RS). A cooperação assinada em novembro estabelece a formalização de uma parceria já existente, mas que define realização de pesquisas relacionadas ao desenvolvimento de tecnologias agronômicas e industriais da cadeia produtiva da cana-de-açúcar, desenvolvimento de novos insumos e formação de recursos humanos.

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