Agricultura

Uva: histórias centenárias e movidas pela paixão à uva e ao vinho transformaram a atividade no País

Em alguns campos bem tradicionais do País, os preparativos para a safra já começaram desde janeiro e devem ir até meados de março. No Rio Grande do Sul, o maior Estado produtor do País, por exemplo, são cultivados cerca de 50 mil hectares (ha) ano após ano. A lavoura se adaptou bem à região fria gaúcha e por lá foi demarcando o seu terroir (lê-se terroá), numa tentativa de aproximação da língua portuguesa com a francesa] – ou seja, “‘uma extensão limitada de terra considerada do ponto de vista de suas aptidões agrícolas'”, descreve o pesquisador da Embrapa Uva e Vinho e especialista em zoneamento vitivinícola e indicações geográficas, Jorge Tonietto no artigo “Afinal, o que é terroir?”.

“Referindo-se ao vinho, aparecem exemplos de significados como, ‘solo apto à produção de um vinho’, ‘terroir produzindo um grand cru’, ‘vinho que possui um gosto de terroir’, ‘um gosto particular que resulta da natureza do solo onde a videira é cultivada'”.

A visão dos parreirais encanta ainda mais com a beleza de uma das paisagens mais marcantes do Brasil, como a da Serra Gaúcha. De lá, elas vêm em cachos e mais cachos, algumas com nomes bem exóticos como as francesas Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Gewurztraminer, Merlot e as italianas Prosecco, Riesling Itálico e Moscato Giallo. Ao final, depois de um longo laborioso processo, elas se constituem na safra de vinho brasileira que cada vez mais ganha seu espaço perante os grandes polos como a Argentina e o Chile. Três personagens, contam um pouco da história da elaboração dos vinhos brasileiros e os planos para tornar a atividade vitivinícola brasileira tão desejada quanto à safra do mais famoso espumante francês, o qual requereu o nome só para si – o Champagne.

Herança familiar

Quando as primeiras famílias vindas da Itália demarcaram seus territórios no Rio Grande do Sul, trouxeram consigo, além da bagagem, o conhecimento de práticas agrícolas específicos da região onde moravam. O cultivo das videiras foi um deles – e se adaptou muito bem por aquelas bandas, como conta o enólogo e diretor técnico da Vinícola Salton, Lucindo Copat. Ele próprio aprendera com os pais, tios e avós a estima pela vitivinicultura. “A atividade inicialmente era muito empírica, e o Brasil era muito desconhecedor da atividade, porque nossos imigrantes detinham uma tradição mais prática do que teórica no cultivo da uva. Ou seja, era um trabalho que era passado de pai para filho, uma herança familiar”.

Copat vivenciou isso – não sabia com precisão o que fazia e porque fazia, mas tinha adquirido o conhecimento de produção da uva e de elaboração de vinho. Foi a partir dessa história que ele revolveu que gostaria de se aprofundar mais sobre o tema e se profissionalizar nesse campo. Em meados de 1969 ele ingressou na Escola de Viticultura e Enologia de Bento Gonçalves (RS) e no ano de 1972 já tinha o diploma de conclusão e novas propostas de estudo na Argentina, na Alemanha, na Espanha e na França. “Tenho uma experiência de 29 anos na área, dos quais, 20 de Salton. Tive a felicidade de viver toda a transformação da viticultura brasileira e ainda ter tido a sorte de ter estudado uma enologia que, na verdade, nem eu sabia o que era”, diz Copat.

O termo refere-se à arte de transformação da fruta uva no vinho, ou como diria o dicionário Houaiss, a ciência que trata do vinho, da técnica de produzi-lo e de sua conservação. De fato, no início o processo tinha de ser artístico mesmo pelo fato de o País não deter toda a tecnologia necessária para a elaboração da bebida. Copat lembrara que o maquinário tinha de ser importado e era muito caro, no final das contas, muitos desses equipamentos tinham de ser feitos por aqui mesmo, para viabilizar a indústria nacional. “O resultado era um vinho que, para aquela época, era bom”.

Ao longo dessa trajetória o próprio governo buscou formas de incentivar a indústria nacional, e na década de 1980 as coisas já davam sinais de melhora com a facilidade do maquinário necessário. No entanto, agora a limitação seria imposta pela própria viticultura – área na qual estão implícitas as questões agronômicas da atividade. E a pressão crescia com a entrada de multinacionais na área de elaboração de vinhos aliada a abertura de mercado, o qual popularizava o produto importado e mais barato.

“Essa modificação da viticultura nacional ocorreu em meados da década de 1990”, conta o enólogo. “Tínhamos o acesso a tecnologia para a indústria, mas ainda não tínhamos uma viticultura à altura de outros centros de referência, porque a reação agrícola é mais lenta. Um processo que requer mais tempo, no qual são estabelecidos o plantio, os testes com as variedades e os cavalos adaptados. Foi a partir de 1999 e 2000, que nos voltamos para uma viticultura nacional e de precisão”, afirma o especialista.

De lá pra cá, nem tudo também foram flores somente. Os problemas se relacionavam especialmente no descompasso de oferta e demanda – muito vinho para pouco consumo. “Ultimamente pode-se dizer que estamos numa fase áurea. Temos até quebrado o paradigma de que o vinho importado é melhor que o vinho brasileiro”.

Tecnologia e suavidade

Parreirais bem conduzidos, devidamente tratados e manejados garantiram a safra ideal para a produção de suco, vinho, frisante ou espumante que mais tem atraído do consumidor. O incremento tecnológico através do desempenho de profissionais mais capacitados na atividade e o melhor desenvolvimento das práticas para a obtenção de uma bebida diferenciada é o que tem impulsionado a indústria. “Isso tem transformado os nossos vinhedos em verdadeiros jardins, com variedades adaptados ao clima tropical brasileiro, com porta-enxerto e clones específicos que, futuramente, vão render vinhos extremamente espetaculares com preços altamente competitivos”, prevê o especialista.

Um dos segredos da produção está justamente na suavidade do movimento como um todo durante o processo. O primeiro passo está na retirada do fruto o mais intacto possível, depois o esmagamento mecânico das bagas, que tenta copiar com perfeição o mesmo processo que era feito com os pés, antigamente. De acordo com o enólogo, a técnica humana é senão a melhor forma que existe, pois é bastante suave.

“A partir dessa suavidade, desde a elaboração, com a própria uva, no envase, sem agredi-la – assim deve se basear todo o processo produtivo. Cada vez que machucamos o fruto ou movimentamos bruscamente o vinho, perdemos qualidade. Temos sim de fazer com rapidez, mas sem perder a suavidade dos movimentos. Está aí o grande segredo do vinho”, revela Copat.

Indústria centenária

É justamente por essa filosofia – objetiva e suave – que a Vínicola Salton caminha atualmente. Ela nasceu em 1910, em Bento Gonçalves a partir da parceria dos irmãos Paulo, José, Ângelo, João, Cezar, Luiz e Antônio, filhos do italiano Antonio Domenico, que chegara ao País em 1878. “Paulo Salton fez com que a vinícola se desdobrasse em vários ramos de trabalho”, conta o neto dele e atual diretor-presidente da empresa, Daniel Salton. “Tínhamos serraria, trabalhávamos com madeira, armazéns de secos e molhados. Meu avô foi um centralizador de mercado. Em 1948 foi aberta uma filial da empresa em Santos, próximo ao porto, isso diminuiu os atravessadores e assim podíamos fazer uma venda mais direta a esse grande centro consumidor”, ressalta o empresário.

O passar dos anos não foram os mais fáceis. Crises econômicas, perdas familiares, as duas grandes guerras mundiais e problemas estruturais da própria vinícola foram moldando os negócios da família. “A segunda geração deixou cair a ‘peteca’. Meu pai, por exemplo, teve de largar os estudos com a morte de meu avô para se dedicar à empresa, além de cuidar da família. Eles não souberam administrar a empresa de forma a rejuvenescê-la em termos de equipamentos. Quando eu passara a fazer parte da vinícola, os equipamentos estavam ultrapassados e os grupos de trabalho mal se falavam”. Por incrível que pareça, não foi o vinho que segurou as pontas naqueles anos todos, mas sim um conhaque – Conhaque Presidente, que até hoje é uma das marcas mais fortes do grupo e que chega a ter uma participação do mercado de mais de 30%.

Já na terceira geração, Ângelo Salton Neto, primo de Daniel, tomara então as rédeas do negócio em 1981 e começou a promover as melhorias necessárias ao empreendimento. Naquela época Daniel já era diretor comercial da empresa. Foi feita a contratação do enólogo, Copat, que deu uma diretriz mais objetiva ao negócio e assim, aos poucos, formaram uma boa equipe de trabalho aliado ao incremento do sistema produtivo e valorização da marca, Salton. A partir daí começou-se a pensar na elaboração dos vinhos finos.

Com a morte de Ângelo, em 10 de fevereiro de 2009, Daniel passaria ao cargo dele para dar continuidade ao trabalho. Ele teve de se adaptar para conduzir o barco da mesma forma que o primo vinha conduzindo. “Já tive muita briga dentro da empresa, tinha a fama de bravo, de duro”, relembra. “Os funcionários até comentavam, ‘olha, cuidado com o Daniel que ele é muito bravo’. De lá pra cá, mudei muito, no dia a dia, ganhando experiência e o feeling do negócio”.

De dois anos pra cá, a empresa tem experimentado ainda mais transformações no foco estratégico, no gerenciamento de crises, na identificação de oportunidades, na área desenvolvimento sustentável e, especialmente, na qualificação de pessoal e de processos. Hoje a marca já tem referência no País e busca o espaço internacional no mercado americano e canadense.

Atualmente o grupo possui três projetos próprios de produção. O primeiro em Bento Gonçalves, outro em Bagé, e o terceiro em Santana do Livramento, iniciado em 1999, que em 2013 contará com uma área de produção de 108 ha – a intensão do grupo é chegar a uma área de parreirais de até 450 ha. O empreendimento ainda conta com o sistema de fornecimento de uvas de pequenos e médios produtores dessas regiões, que totalizam 630 fornecedores em dois mil ha. Disso aí, 200 ha em Bagé e 130 ha em Santana do Livramento, aproximadamente.

Este ano a safra deve atingir 17 milhões de quilos (kg) – 500 mil de produção própria. Ano passado o montante foi de 24 milhões. A queda se deveu a uma redução na quantidade de uva pedida aos fornecedores por conta do estoque alto feito na safra de 2010/2011. Ano que vem, com a área de Santana do Livramento, a Salton colherá 750 mil de kg, com meta a chegar a 1,5 milhão de kg, a partir da expansão da área pretendida.

À moda portuguesa

Já em outras bandas do País, exatamente em São Roque (SP), outro personagem iniciara na década de 1930 uma produção de uvas e vinhos além das tradicionais de culturas de subsistência como o feijão, o milho, a batata e algumas lavouras de serra como a própria pera e o marmelo. O descendente de imigrantes portugueses, Benedito Moraes de Góes, ou seu Nhô Dito Góes, juntamente com seu irmão, Firmino de Góes, foi influenciado pela cultura italiana que então chegara à região para trabalhar na lavoura cafeeira. Sem o êxito no café, o jeito foi desenvolver a cultura da uva que se adaptaria muito bem àquela região de clima com muita geada e um inverno bastante rigoroso e seco. “Foi aí então que os remanescentes de origem portuguesa passaram a atuar nesse tipo de cultura”, diz Cláudio Góes, bisneto de seu Nhô Dito, e diretor-presidente da Vínicola Góes. “Ele começara a fazer o vinho de uma forma bem artesanal, em pouca quantidade. Uma passagem interessante descreve meu bisavô indo levar uva para o Mercado Municipal de São Paulo em carros com tropa de muares, burros, para o atendimento ao mercado de uva de mesa da capital”.

Assim como a vitivinicultura gaúcha, a paulista igualmente nascia a partir da transmissão de herança familiar, muito baseado no trabalho das famílias italianas. “Teve até um professor de enologia que se estabeleceu na cidade e que pôde ministrar alguns cursos para eles. O próprio governo do Estado ajudou a fomentar a atividade”, destaca Góes.

Já em 1946, os filhos de seu Benedito, Gumercindo e Roque de Góes, fundaram a Vinícola Palmares, consolidando uma marca no mercado na década de 1960. “Depois disso com o aumento da família, eles entraram em comum acordo para dividir a sociedade”, conta Góes. “Roque ficou com a marca Palmares e Gumercindo com a Góes [que iniciara oficialmente a produção em 1963] – empresa na qual já estamos na quarta geração como produtores de vinho e na terceira geração pela instituição do negócio próprio de meu avô, Gumercindo”.

O tempo fez com que a atividade prosperasse e a própria região se dedicasse mais ao vinho – atualmente essa é a notoriedade da cidade paulista. Com o advento tecnológico e a melhor apropriação do conhecimento técnico, a vitivinicultura paulista foi ganhando mais espaço e a empresa familiar se especializou. Hoje há engenheiros agrônomos, enólogo, engenheiro químico que são membros da família.

Altos e baixos

Por volta da década de 1980, a produção agrícola sofreu uma queda muito grande, em função do êxodo rural e da sobrevalorização das terras impulsionada pela especulação imobiliária. Em termos de rentabilidade, o melhor então seria a venda de áreas do que manejar uma lavoura que não renderia o mesmo nos negócios. Atualmente na região há 15 vinícolas remanescentes, reunidas através de um sindicato na busca de saídas para a melhoria da atividade. “Temos então trabalhado desde 2001 no sentido de recuperar o setor. Por isso fizemos algumas áreas de pesquisas com novas variedades. Além das tradicionais que estão em produção no País, há também as híbridas desenvolvidas pela Embrapa que já estão adaptadas ao clima brasileiro, como Lorena, Violeta, Margot e Carmem. Estas cultivares buscam uma qualidade diante das dificuldades e obstáculos de um clima tropical que o Brasil oferece”, pondera o produtor.

Aos poucos, os aspectos que pareciam limitar a atividade, deram oportunidade para que a empresa e a comunidade vitivinícola de São Roque vislumbrassem mais a área através do incentivo à mão de obra e à lavoura, através de cursos profissionalizantes, planejamento de abertura de produção em novas áreas, fomento em polos tradicionais de uva no Rio Grande do Sul, além do estímulo a novos produtos a base de uva.

No campo de fomento à mão de obra, o incentivo veio através do Instituto Federal de São Paulo, que oferece há três anos um curso de agroindústria e agronegócios. Para 2013, já está praticamente certo o início do curso superior em Enologia.

Na questão de expansão de parreirais no Estado de São Paulo, os produtores tanto de São Roque como de outros municípios vitivinícolas se congregaram politicamente e agora estudam juntos possíveis áreas que podem viabilizar a produção. “Regiões de Jundiaí, Louveira, Valinhos e São Carlos, por exemplo, estão sendo estudadas. Neste último, já possui alguns testes sendo feitos lá. Em Jales também é possível haver a implantação da atividade numa escala viável”, assegura o empresário.

Outro foco está na força do próprio enoturismo, que traz ganhos para a propriedade rural. De acordo com Góes, a atração à cultura do vinho e seu processo de elaboração possui um apelo muito forte e ajuda a cidade como um todo. As festividades, a época de colheita e o esmagamento com os pés podem sem experimentados pelos visitantes. Isso tem atraído e muito os turistas, daí, beneficiam-se também outras atividades artesanais na parte de compotas, doces, queijos, entre outros. Isso, sem contar também o retorno da rede hoteleira e demais serviços de lazer na região.

Mais produtos e investimentos

Oferecer de mais produtos e derivados da uva é o desafio para manter o setor aquecido. “Se considerarmos que o Brasil é um País tropical, de clima muito quente, com muito calor, muita praia e muito consumo de cerveja, precisávamos também oferecer algo que pudesse ir nessa linha. Nesse sentido desenvolvemos o Grapecool”. A bebida é popularmente conhecida como o chopp de vinho, possui baixa graduação alcoólica e é obtida a base de vinho gaseificado. A ideia é justamente apresentar ao público consumidor uma alternativa barata e que combine com o clima brasileiro. “Isso serve de estímulo para se conhecer mais produtos a base de uva, e aí, temos uma porta de entrada para o vinho. Àqueles que já tomam vinho de mesa, oferecemos o tipo demi-seco (ou meio-seco), com baixa graduação de açúcar, isso atrairá ao consumo do vinho de maior qualificação”, ressalta Góes.

Todo esse estímulo já tem rendido um aumento nas vendas em 10% ao ano, e os planos é poder crescer a atividade da própria vinícola, especialmente na produção do suco de uva. O plano, em médio e curto prazos, está calcado na continuidade de estudos com as variedades europeias, no aumento na área e instalações de atendimento ao turista, com salas de cursos de degustação, por exemplo. Em médio e longo prazos, a intensão é ter extensos parreirais na região do sudoeste paulista, com cerca de 300 ha, em Buri (SP), onde as áreas podem ser facilmente mecanizáveis.

Atualmente 80% da produção da Vinícola Góes é originada de uma unidade da empresa em Flores da Cunha (RS). Ao todo, as áreas próprias em São Paulo e Rio Grande do Sul somam 100 ha. Grande parte das uvas é fornecida por colonos gaúchos, que somada à produção própria rendem em média oito milhões de kg por ano – montante capaz de render seis milhões de litros de vinho e suco anualmente.

Calendário vitícola

Junho e julho. No inverno é feito o manejo de adubação da videira. É o momento que a planta perde as folhas e precisará de uma boa alimentação para poder hibernar e desenvolver as raízes.

Agosto e setembro. Nesse período tem de ser feita a prática de poda, muito bem conduzida. Isso fará com que a planta produza bons frutos. Além disso, fazem-se necessários os tratamentos fitossanitários adequados.

Setembro a dezembro. Na primavera é período no qual a videira inicia seu movimento interno, ou seja, a seiva da planta começa a circular. Com essa circulação, ela começa a emitir as folhas e brotar. Depois disso tem a floração e a formação dos frutos.

Janeiro a março. O ponto ideal de colheita inicia-se. Para cada variedade há um manejo específico, bem como uma época certa de colheita, a qual tem de se basear na madureza enológica, ou a madureza propícia para a elaboração do vinho. Do início da floração ao início da colheita, o período chega a 100 dias, aproximadamente.

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