Recentemente tem-se notado uma invasão de carnes exóticas, presente cada vez mais nos cardápios de vários restaurantes. Até mesmo em churrascarias populares já é possível encontrá-las. Além desses, em estabelecimentos comerciais especializados em carnes, os chamados “meat shops”, é possível achar uma gama de ofertas bem mais ampla do que alguns anos. As carnes, as chamadas exóticas, hoje são usadas como ingredientes em várias receitas, do churrasco à pizza passando até mesmo por pratos principais. Nos cardápios se encontra, entre outras, com relativa facilidade carne de cordeiro, veado, faisão, avestruz e javali.
Em especial o javali, após 15 anos de um trabalho de genética, nutrição e manejo, tem se apresentando como uma ótima aceitação, principalmente, pelos apreciadores da boa mesa pelo seu delicado sabor. Hoje, criadores no Estado de São Paulo estão colocando no mercado um produto com alto padrão de qualidade, com cortes selecionados que atendem às exigências de chefs de cozinhas de renomados restaurantes, principalmente, na região sudeste.
E foi pensando nesse mercado de sabores, que a produtora de carne de javali, a paulista Temra investiu há 15 anos neste tipo de criação. Hoje, toda a sua produção – que chega ao abate de 200 animais por mês – são destinadas para restaurantes de alta gastronomia, em São Paulo, como o D.OM. e o Friccò, além de churrascaria e pizzaria que leva com um dos ingredientes a linguiça defumada de javali. “Só atendemos a esse mercado selecionado”, diz o engenheiro agrônomo, André Fleury Alvarenga, proprietário da Temra, situada em Piedade, em São Paulo.
A intenção é produzir um produto exclusivo, que pode ser um novo corte ou um tratamento diferente dado à carne. “Com isso, derrubou a resistência que existia com a carne. Além disso, os cortes mais interessantes aos restaurantes nos proporcionaram o aproveito inteiro do animal, até mesmo porque um animal demanda ter 50 quilos para a abate”, diz Alvarenga.
A enorme dificuldade de se obter animais puros, sejam capturados vivos do seu ambiente natural ou oriundos de criatórios comerciais, sua baixa prolificidade e maior lentidão no processo de ganho de peso, quando comparados a outras espécies, sempre tornou sua exploração pouco atraente, sob o ponto de vista econômico. “Eis o motivo, da aposta por esse mercado é por qualidade e profissionalização da criação”, diz.
Além de criar, a Temra ainda faz o abate e fornece a carne para diversos apreciadores da carne. Segundo Alvarenga, quando o animal bem manejado fica até dócil. “Com a pesquisa sobre a criação desenvolvemos uma criação modelo. Até os profissionais da área ficam impressionados com os animais, que crescem rápidos e bem alimentados”, afirma. “Os cuidados com os manejos sanitários e nutricionais são específicos”, diz Alvarenga. Segundo o criador, o que se fazia muito antigamente era que costumava fazer a minha criação com o porco. Porém, são animais bem distintos. A começar pelo manejo desenvolvido para esses animais. O sistema adotado de criação pela Temra é o semiconfinando. As fêmeas que vão parir entram em um confinamento. As terminações são realizadas em grandes piquetes. “Quando menos estresse o animal sofre, melhor para o resultado final”, diz.
No seu criatório existem 1500 animais, sendo 350 fêmeas. O projeto de criação e produção desses animais ganhou força após uma parceria com a Faculdade de Medicina Veterinária (USP) de Pirassununga (SP) e do Coordenadoria de Assistência Técnica Integral, Secretaria de Agricultura e Abastecimento, Governo do Estado de São Paulo (CATI). “A proposta é manter uma produção dentro das exigências do mercado”, afirma. Diferente de um modismo que acendeu as especulações e de criações não idôneas, hoje o que restou foi aquelas que envolve o profissionalismo acima de tudo. “Aqueles que eram bons ficaram. Hoje se conta que existam quatro em São Paulo”, afirma Alvarenga.
À frente da criação dessas e de outras espécies selvagens está também Gonzalo Barqueiro, que montou uma empresa, a Cerrado Carnes, para cuidar do produto do nascimento até o prato. Após fundar, em 2002, a ONG TSI, de desenvolvimento sustentável, ele percebeu que para alcançar suas metas seria preciso aliá-las à conservação e aos negócios. Hoje suas carnes e serve para restaurante sofisticados também na cidade de São Paulo. Entre os destaques de um dos seus clientes está um restaurante que serve nhoque com javali.
Segundo os produtores o mercado encontrou um nicho, que vem aumentado gradativamente, pela questão das qualidades nutricionais da carne e pela expansão de pontos de vendas e restaurantes. Considerada exótica e de sabor suave, a carne de javali já era degustada pelas cortes européias e por isso ganhou a fama de carne nobre. No Brasil, as primeiras criações destinadas ao consumo datam da metade da década de 1990.
Para poucos
O consumo da carne de javali cresceu, mas não se popularizou tanto. Segundo Alvarenga, a carne tem um paladar específico e caiu na graça dos chefes de cozinhas. “A criação ficou restrita a criadores credenciados e com o mercado certo”, diz. Fatores inibidores como o alto custo da produção, o preço do produto e o não reconhecimento dos criatórios pelo Ministério da Agricultura (Mapa) contribuíram para que a carne não ganhasse mais tanto espaço. Segundo a área técnica do Ibama, os criadores de javalis que existiam no país tiveram prazo até 1998 para regularizarem sua situação junto ao Ibama. De acordo com fontes do Ibama, a implantação de novos criadores a partir daí foi proibida pela Portaria Ibama n° 102/1998. Assim, atualmente não há possibilidade de autorizar novos criadores de javalis no país.
O javali é classificado pelo órgão como um animal silvestre, não originário da fauna brasileira. Além disso, a espécie se reproduz rapidamente e está no topo de cadeia alimentar, ou seja, não possui predadores naturais, o que acaba gerando uma super população e um desequilíbrio ambiental. André Alvarenga lembra que no passado os animais foram soltos e não fugiram dos criatórios, como todos atestam. “Nos criatórios legalizados é difícil os animais fugirem, escaparem, com muita facilidade”, diz.
No Estado de São Paulo tem muitos javalis perambulando. Nos canaviais de Ribeirão Preto já existe a caça aos javalis”, diz Guilherme Petrin, médico veterinário da Temra. Segundo ele, no Rio Grande do Sul, os javalis são considerados problemas em lavouras de cereais, por destruírem tudo. “Soltos eles também são transmissores em potencial de doenças, já controladas na suinocultura. Além disso, muitos deles aproximam-se dos sítios e granjas, ‘cobrindo’ porcas no cio”, afirma Petrin.
Segundo ele, quando terminou o prazo para a legalização, produtores irregulares soltaram os animais. Na última década, o número de javalis aumentou e causou prejuízos para os produtores rurais. A invasão do javali em território brasileiro foi registrada oficialmente em 1991, no Rio Grande do Sul. Essa história começou quando a espécie exótica foi introduzida para caça, na Argentina. Livre na natureza, o javali se espalhou: passou para o Uruguai e atravessou a fronteira do Brasil.
Após legalização, houve uma diminuição do número de criadores. Cerca de 80% dos criadouros deixaram de fornecer a carne de javali. Em contrapartida, o consumo ficou estável o que gerou uma ligeira alta no preço do produto.
“O sus scrofa”, a história do javali
A origem do javali, cuja denominação cientifica é “sus scrofa”, remonta há vários milênios. Ele é o ancestral do nosso porco doméstico, que resultou de infindáveis cruzamentos, acabando por se transformar num animal completamente diferente daquele que o originou. Por causa desse distante parentesco, muitos acham que o javali é o porco da natureza, mas ocorre justamente o contrário. Primitivamente surgido no Norte da África e Sudoeste da Ásia, o javali, em tempos remotos migrou para a Europa, onde se disseminou pelas diversas regiões daquele continente, sempre se adaptando aos diferentes climas e topografias que foi encontrando. Esse processo evolutivo resultou em várias subespécies ou “tipos” de javali, porém suas principais características foram manadas em todas elas.
Vivendo em manadas, lideradas por um macho adulto e com várias fêmeas e suas crias, o javali, bastante territorialista e defende seus domínios decididamente, contra predadores ou a aproximação de outros machos. Por vezes, um líder de manada se deixa acompanhar por dois ou três machos mais jovens, chamados “escudeiros”, que além de aprenderem com o mais velho os truques de sobrevivência e defesa, ajudam-no a proteger e defender o grupo.
A cultura medieval considerava o javali como símbolo da força, da coragem e da bravura, suas presas eram utilizadas como amuletos e símbolo dessa força entre os guerreiros e caçadores dos povos primitivos. Num cobiçado e valiosíssimo troféu de caça, mas sobretudo pelo delicado sabor da sua carne e suas excepcionais qualidades. Quando comparada com a carne bovina, por exemplo, a carne de javali apresenta 85% menos calorias, 31% mais proteínas, 15% mais minerais, 5 vezes menos gorduras e um índice de colesterol próximo de zero. Com todas estas qualidades, era de se esperar que o javali fosse muito mais explorado comercialmente. No entanto, só recentemente os nutricionistas tiveram sua atenção despertada para esta carne.
Criação
Tratando-se da nutrição desses animais, pode ser utilizado os mesmos núcleos vitamínicos e rações geralmente a base de soja e milho semelhantes as utilizados em criações convencionais de suínos. “Devemos ficar atentos ao fato que o javali por ser um animal rústico, provavelmente deverá ser criado por um maior tempo (visando o peso de abate)”, diz o veterinário.
Segundo ele, criar javalis em semiextensivo requer instalações que garanta uma liberdade de movimento mantendo o hábito de animal silvestre. Sol, chuva e sombreamento são requisitos indicados para uma boa criação. Cercas duplas para manter a segurança dos fujões são recomendadas. Na questão do manejo nutricional, os animais de baixo ganho de peso. Como se alimentam, somente da ração que é fornecida, ela deve ser balanceada.
Milho, farelo de soja, farelo de trigo, sal branco e premix vitamínico/ mineral deve ser a dieta adequada para suprir as diferentes categorias dentro do criatório. Com relação ao manejo sanitário, ele explica que os animais são agrupados em lotes por idade, para evitar brigas e controlar as principais doenças existentes.
O médico veterinário, Guilherme Petrin, lembra que os javalis são vacinados para prevenir doenças como a Pneumonia enzootica, Doença de Glesser, Rinite Atrofica, Parvovirose, Leptospirose e Circovirose. “Controlamos por meio de medicação as verminoses, sarnas, enterites especifica”, diz.
Durante o período de reprodução, os animais são mantidos uma relação de um macho reprodutor para cada 20 fêmeas matrizes. O acasalamento se dá por monta natural. Considerando o período de gestação, amamentação e espera para entrada do cio, somam-se 170 dias. Obtemos dois partos por matriz ano. O espaço físico não tem limites, mas o trabalho requer 20 metros quadrados por animal, sem pastoreio.
Valores Nutricionais
Um estudo feito pela Universidade de São Paulo mostra que a carne de javali é mais magra que as outras e tem menos colesterol. Comparando com a carne de boi tem a metade das calorias e quase a metade de colesterol.