Agricultura

Sistema agrossilvipastoril: a ressurreição do solo

“Muitos me chamavam de louco, que eu não ia conseguir produzir nada do jeito como estava tratando do solo”, relata Luis José Pereira, pequeno agricultor da Comunidade Casa de Pedra – a qual congrega cerca de 36 famílias, lá no município de Carnaubal, no interior do Ceará. “Hoje, quem me criticava vê os resultados. O solo mudou completamente. O que antes era pedregoso e seco, se tornou verde e produtivo”, se entusiasma o agricultor de 70 anos.

O que começou a mudar a vida de seu Luis, lá na região semiárida do Nordeste, foi a busca por informação para se produzir numa área que já não dava mais sinais de vida, em especial, no solo. O primeiro passo era por o fim à prática mais aplicada lá na região, a queimada. “Ela dava resultados de uma colheita pra outra, mas depois disso, o solo ia diminuindo a produtividade, e ia morrendo”, declara Pereira.

Por ser um trabalho fácil para sobrepor uma lavoura à outra já colhida, a queimada tornou-se uma prática muito consolidada e tradicional no Estado. Segundo dados oficiais, atualmente, são desmatados e queimados de 600 mil a 700 mil hectares (h) todo ano no Ceará. Essa prática provoca a degradação dos ecossistemas, que acabam refletindo numa baixa produtividade, em especial, à propriedade familiar dos sertões nordestinos.

Inicialmente, através de programas de divulgação de técnicas agrícolas pela Cáritas Brasileira Regional Ceará, em Fortaleza (CE), entidade ligada à Igreja Católica, e atualmente com o apoio da Embrapa Caprinos e Ovinos, em Sobral (CE), a comunidade cearense foi aprendendo a lidar com o solo e a recuperá-lo.

“A incorporação de matéria orgânica no solo foi o primeiro manejo para a recuperação dele, assim como o plantio de culturas leguminosas que auxiliam nesse processo, como a leucena e a gliricídia, plantas forrageiras que ajudam muito na fixação de nitrogênio no solo”, explica Nilzemary Lima da Silva, pesquisadora da Embrapa Caprinos e Ovinos, que coordena atualmente o projeto “Sistema de Produção Agrossilvipastoril para a Região da Caatinga”, iniciado pelo ex-pesquisador da unidade, João Ambrósio de Araújo Filho.

A integração lavoura-floresta-pecuária é a base do sistema agrossilvipastoril, e está fundamentada nos aspectos de clima e solo da região. Na lavoura, por exemplo, predominam as culturas como milho, feijão, sorgo e mandioca; na floresta, a flora da Caatinga é preservada; e na parte de pecuária, a criação de galinhas, cabras e ovelhas fecham o ciclo produtivo. Aos poucos, o sistema foi agregando mais fôlego e ânimo ao produtor cearense que foi percebendo os resultados do uso das técnicas de manejo.

Pelas estimativas da Embrapa, o sistema possibilita uma produção animal de 61 quilos por hectare por ano (kg/ha/ano) de peso vivo de cordeiro desmamado, o que é dez vezes maior que no modelo tradicional. Uma produção de grãos, como o milho, que pode chegar de 1.500 a 1.400 quilos kg/ha/ano, enquanto que a média do Ceará, não ultrapassa 400 kg/ha/ano. Aliado a esse incremento na produção, é possível afastar o perigo da desertificação, que só no Estado há uma ameaça de 15% a 20% do território.

Trabalho pesado

Seu Luis e a esposa, Francisca Amélia do Carmo, produziam feijão, milho, mandioca e fava, e, com o sistema, faziam a ração voltada à criação de ovelhas e cabras. A história de transformação do sítio dele começou mais ou menos há sete anos, com o auxílio da Cáritas. A partir do projeto da Embrapa, ele e mais integrantes da comunidade Casa de Pedra, implantaram em cinco hectares (ha) uma versão do que havia sido feito lá na própria unidade de Sobral, do órgão de pesquisa agropecuária do governo federal.

Três ha eram destinados à produção animal, e a lavoura e a mata nativa ficavam em 1 ha cada uma – o que obedecia à proporção feita no campo experimental da Embrapa de oito ha, pelo Projeto Agrossilvipastoril (20% de lavoura, 20% de floresta, e 60% de pecuária).

A verdade é que não foi fácil fazer o solo ressurgir das cinzas das queimadas, segundo Pereira. O trabalho diário tinha de ser à base da enxada ou da foice, com o corte da vegetação e o acúmulo desse material no próprio local (a incorporação de matéria orgânica). “No primeiro ano, não deu nada”, lembra. “A gente semeava e a planta não vingava. Só foi ter resultado mesmo no segundo ano de trato com o solo, jogando toda a palhada cortada nele”.

O solo predominante na região é classificado como Neossolos do tipo quartzarênicos, ou areias quartzosas, segundo estudos da Embrapa. “Esse tipo de solo é geralmente profundo, com boa drenagem, o que não permite a retenção de água. Ele possui um pH que varia de 4,5 a 5,5, caracterizando como ácido, ainda é quimicamente pobre, e fisicamente próprio para o uso agrícola”, define Silva.

Atualmente seu Luis retira duas sacas de feijão e duas de milho por hectare. A produção de mandioca ele teve de reduzir em função de baixos preços lá na região, e a fava, cultura que vem desenvolvendo há dois anos, rende-lhe mais de uma saca por hectare.

Com a palma e a leucena, ele chegou a levar a criação de 20 a 30 cabeças, entre cabras e ovelhas. Atualmente ele deixou de lado a criação pelo fato de estar só ele e a esposa na lida com o sítio. A produção se destina ao próprio consumo, ou funciona como base de troca para outros itens de necessidade.

E é justamente esse o tipo de economia que é estabelecida lá na região – o cultivo de subsistência. E apesar de a comunidade ser composta por 36 famílias, apenas nove realmente abraçaram a ideia do sistema agrossilvipastoril. “Mesmo eles vendo o resultado, a razão de haver resistência por participar do programa é por causa do trabalho duro que tem de ser feito, como a capina”, acredita Pereira.

A lavoura

A organização do espaço foi pensada para incorporar três ambientes diferenciados, mas que ao final, estarão contribuindo mutuamente. A lavoura, em primeiro, se destina à produção alimentar. Na área para o cultivo, estabelecida em fileiras (aleias), foi feito o raleamento, com redução do número de árvores no sistema, preservando-se uma cobertura arbórea de 15%, o que equivale a aproximadamente a 150 árvores por hectare, segundo Silva.

Para a realidade nordestina, só há duas estações: o inverno (a chuvosa, que vai de janeiro a junho) e o verão (a seca, que vai de julho a dezembro). Então, no verão, são feitas as atividades necessárias para o plantio das culturas na estação seguinte, como o roço nas rebrotas, a construção de cercas que separam a criação da lavoura, e é feito a adição de esterco nas covas onde estavam a cultura anterior.

No inverno é feito o plantio. A ausência de produção no ano inicial de implantação do sistema é explicada pela baixa fertilidade natural e quantidade de matéria orgânica no solo. O trabalho de seu Luis serviu de exemplo de como obter resultados positivos na recuperação do solo. “Esta adição ocorre em função da decomposição de materiais como folhagem, restolho de árvores e esterco em valas no solo, além disso, há fixação de nitrogênio do ar realizado pelas leguminosas”, explica a pesquisadora da Embrapa.

Por causa da falta de retenção de água no solo, o uso de um gotejador, em cima da planta, logo após a germinação da semente, garantia à disposição do líquido no solo, isso até o ganho de porte do vegetal. A técnica é caseira e muito simples, feita com uma garrafa PET, cortada pelo fundo, e com pequeno orifício na tampa. A garrafa fica pendurada numa estaca, com a tampa pra baixo, e vai pingando a água no solo. Essa técnica de gotejo é feita até a planta chegar num porte no qual ela já seja autossuficiente para captar a água do solo.

A floresta

A Caatinga se constitui num bioma de extrema riqueza, até de flores, o que proporciona a exploração apícola na região. Portanto, o estigma de ser retratada apenas por árvores de porte baixo, retorcidas e com ou sem espinhos – classificação do tipo Carrasco – não expressa a realidade desse tipo de vegetação. De acordo com Silva, há o registro de 596 espécies lenhosas, entre elas, 180 endêmicas, ou seja, que só existem na região. Entre as espécies lenhosas mais comuns, estão: a catingueira (Caesalpinia bracteosa Tul.), o marmeleiro (Croton sonderianus Muell. Arg.), o mofumbo (Combretum leprosum Mart.), a sabiá (Mimosa caesalpiniifolia Benth.), a jurema preta (Mimosa tenuiflora (Wild.) Poir.), o jucazeiro (Caesalpinia ferrea var. cearensis Huber), o juazeiro (Zizyphus joazeiro Mart.), a caninana (Sabicea cinerea Aubl.) e a catanduva (Piptadenia moniliformis Benth.).

Produção animal

A área de três ha destinada às atividades pastoris é raleada e rebaixada, preservando-se uma cobertura de arbóreas, em cerca de 35% (o que representa cerca de 350 árvores por ha no pasto). O rebaixamento consiste no corte da parte aérea das espécies arbustivas e arbóreas de valor forrageiro.

Na época das chuvas, os animais são dispostos numa área de “banco de proteína”, na qual pastejam por cerca de uma hora a uma hora e meia. As matrizes recebem no período seco uma suplementação alimentar a base de feno de leguminosa (300 gramas (g) a 400 g por cabeça) e rolão de milho – palha mais espiga trituradas – ou mesmo o sorgo triturado (também de 300 g a 400 g por animal), ministrada à tarde. Elas são submetidas a um regime de três coberturas a cada dois anos. A desmama das crias se dão aos 70 dias de idade. Todo o esterco recolhido no estábulo é aplicado na área agrícola.

O valor do solo sertanejo

Pelos resultados obtidos, a Caatinga tem muito mais a oferecer do que o simples cenário de pobreza retratado em filmes ou documentários brasileiros. Ela é produtiva. “Atualmente ela só oferece ¼ do potencial que realmente pode se alcançar com aquele tipo de solo”, destaca João Ambrósio de Araújo Filho, especialista em manejo de pastagens nativas da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), em Sobral (CE). “Isso tudo em função do desmatamento e das queimadas que empobreceram o solo pela falta de matéria orgânica”, explica.

A reversão dessa realidade foi um desafio que teve de contar o trabalho de pessoas como o seu Luis, que mesmo sendo chamado de louco, conseguiu fazer ressurgir a produtividade no sítio dele. O apoio da Cáritas Brasileira Regional Ceará também foi fundamental para a obtenção dos resultados – um trabalho que a entidade já vinha desenvolvendo na região. “Me lembro de reuniões que fazíamos com os produtores da região”, conta Araújo Filho. “No primeiro dia de campo, em 2005, chegamos a reunir cerca de 180 produtores rurais lá na comunidade Casa de Pedra. Isso foi surpreendente, pois imagine um lugar longe de tudo… Isso era a comunidade, e mesmo assim, houve esse conglomerado de produtores interessados”, conta o pesquisador sobre a época que atuava como coordenador no projeto da Embrapa.

Ao todo foram estabelecidas 25 unidades de demonstração, como a de Carnaubal – também presentes nos Estados do Rio Grande do Norte e Pernambuco. “O trabalho foi feito com a participação efetiva do pequeno produtor. Ele era como um pesquisador também, que fazia a experiência e via depois os resultados”, conta Araújo Filho.

“Numa das reuniões que tivemos, seu Luis já tinha o resultado na propriedade dele, o solo já estava fértil e produzindo, um outro produtor o perguntou, ‘seu Luis, qual o macete da coisa?’. E o próprio respondeu, ‘a palavra-chave é paciência’”, relata o pesquisador.

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