Pecuária

Leite: a revolução dos pequenos

A produção leiteira no País, um dos segmentos do agronegócio que mantém o espaço para os pequenos produtores, evoluiu de forma significativa nos últimos 25 anos, mesmo perante a grande instabilidade de preços do produto.

O visível compromisso do produtor de leite em melhorar todo o processo de produção, provavelmente um dos mais delicados e complexos da atividade rural, surtiu efeitos e vem sendo acompanhada por uma verdadeira transformação silenciosa, mas não menos importante no campo.

O estímulo para as mudanças aconteceu também, tudo graças às parcerias e muitos projetos distribuídos pelo País. Em São Paulo, por exemplo, um deles tem melhorado a vida de muitos produtores de leite: é o projeto da Viabilidade Leiteira na Agricultura Familiar, hoje denominado CATI Leite – Desenvolvendo São Paulo.

Em parcerias com a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI), Embrapa Pecuária Sudeste e outras entidades, – o projeto que teve início em 1999, – hoje envolve 490 produtores de leite cadastrados, entre micro e pequenos, que passam por treinamento, têm assistência técnica garantida e aprendem princípios de gestão sem custo algum. Tudo para alcançarem os objetivos do Projeto CATI Leite, que são a redução de custos de produção da pecuária leiteira, aumentar a margem de lucro dos produtores rurais, garantir a sua auto-estima e fixá-los ao trabalho no campo. De acordo com os números da CATI – para o próximo ano – a meta inicial é a implantação do projeto em 600 propriedades leiteiras, sendo que já alcançou mil propriedades rurais, com 375 técnicos capacitados e mais 250 em capacitação. “As técnicas são simples, mas é preciso flexibilidade para implantação. Trata-se principalmente de cuidados com pastagens e investimentos em irrigação, melhoria do manejo e monitoramento de dados econômicos para diminuição de custos. Na propriedade onde trabalha com um animal por hectare, hoje trabalhamos com pelo menos dez”, explica Sra. Ilce Pazzini, adepta desde 2001 ao Projeto CATI Leite.

Ela e seu esposo, João Bosco Pazzini, seguiram à risca as orientações dos técnicos, após participarem de um “Dia de Campo” – promovido pela Embrapa Pecuária Sudeste, em São Carlos (SP). Hoje, com 29 vacas em lactação, o sítio Recanto dos Jacarandás é capaz de produzir o dobro de litros de leite por dia. Com custo de produção baixo, a remuneração para o produtor chega a ser 560 maior do que o investimento. Resultados como esse ou melhores já foram conquistados por muitos produtores. “A princípio, a ordenha era manual e não tínhamos sistema de fosso. Mas, à medida que o projeto foi implantando, novas instalações foram construídas, o manejo das vacas e a ordenha sofreram modificações. Com isto, a qualidade do leite e o trabalho executado por dois empregados contratados, melhoraram muito. Passamos a produzir até leite tipo B, o que agregou maior valor e paramos até de vender informalmente para bares da cidade”, ressalta a produtora.

A propriedade no município de Piquete – localizada na microrregião de Guaratinguetá – no Vale do Paraíba (SP), possui 14 hectares divididos em: 1,3 ha de cana-de-açúcar, 1,2 de capim tifton, um ha de capim-mombaça e o restante são os espaços destinados para recria das bezerras, residência dos produtores e para as matas ciliares (vegetação que ocorre nas margens de rios e mananciais).

Durante a implantação do projeto, os técnicos da CATI Regional de Guaratinguetá identificaram, no sítio Recanto dos Jacarandás, um dos principais motivos da baixa produtividade: a má alimentação do gado. “Muitos produtores desconhecem o que é bom para as vacas. No início, nossa pastagem só tinha capim-braquiária. Porém, ocorreu um ataque de pragas e eu mudei para o capim tifton, a pedido dos técnicos. Com a mudança, o volume de leite aumentou em 20%. Três anos depois, fiz um consórcio de pastagem de tifton e forrageiras de inverno (aveia e azevém). Como é período de seca, aproveitamos o sistema de irrigação, que também implantamos no sítio. E o resultado foi satisfatório”, diz a Sra. Ilce Pazzini, que também aderiu ao pastejo rotacionado. A prática indicada pelos técnicos permite alterar o uso do pasto, pela divisão dos mesmos piquetes, de modo a permitir que o animal utilize o pasto por determinado período (entre 1 a 5 dias). A época da ocupação é seguida por um período de descanso, que serve para a planta repor nutrientes e produzir forragem para o pastejo. No caso da produtora, a prática contribuiu para o uso da pastagem durante 11 meses ao ano. Hoje, na propriedade há 18 piquetes, sendo que há também o hectare de cana-de-açúcar, que após a utilização da forrageira de inverno, diminuiu a sua utilidade, restando aos produtores destiná-los boa parte para a venda.

Com a primeira parte do Projeto CATI Leite concluída, a segunda veio com questão do melhoramento genético. Segundo a proprietária, no início da produção não existia raça definida para a pecuária leiteira. “No total, conseguíamos apenas 70 litros/leite/dia”, conta. Após as adaptações, incluído animais que responderam ao perfil da produção de leite, atualmente, a produtora já chegou a produzir até 420 litros/leite/dia. “Na época de lactação, a média chega a 250 litros. E olha, que hoje estamos na fase de vacas secas”, alerta.

A produtora afirma que estes dados eram impossíveis de serem alcançados, sem a ajuda do Projeto CATI Leite. “Nem pensar…”, risos. “Inclusive no primeiro ano só tivemos prejuízos, plantei até alguns hectares de milho. Não tínhamos o conhecimento das tecnologias disponíveis. Com o Projeto, nós seguimos a orientação e a propriedade prosperou”, conclui Sra. Ilce Pazzini, que diz que para o projeto vingar tem que haver disciplina. “Existem regras que tem ser obedecida. Elas são necessárias para que o custo não aumente. Quando iniciei, a idéia era ter algo sustentável. Acredito que já está bom (…). Um ponto aprendi… e não ir com tanta pressa”, enfatiza a produtora.

No sítio Recanto dos Jacarandás não somente a propriedade se transformou, mas a vida dos produtores. Lá, quem comanda da produção leiteira é a Sra. Ilce Pazzini. O marido apenas supervisiona. Mas, o interesse pelo Projeto CATI Leite foi “abraçado” pela produtora, tanto que decidiu cursar Gestão de Negócios, para adquirir mais conhecimento a respeito de gerenciamento da propriedade. “O Projeto serviu de escola, aprendi a plantar, manejar e até melhorar a qualidade de vida dos empregados”, alegre-se a Sra. Ilce.

Da ordenha mecânica até o leite granelizado, os tempos agora são outros. Toda a produção tem destino certo, vai para Cooperativa de Laticínios de Guaratinguetá. “Fato impossível de imaginar, há alguns anos atrás. Claro que há algumas oscilações de preços do produto, mas nossos custos estes já controlamos. Esperamos que abaixe o máximo possível. O bom é que conseguimos simultaneamente concluir a terceira etapa do projeto: melhor a qualidade do leite”, diz satisfeita a produtora, que garantiu a rentabilidade à pequena propriedade.

De acordo com o pesquisador e engenheiro agrônomo, Dr. Jovino Paulo Ferreira Neto, diretor regional CATI de Guaratinguetá, ao longo do tempo muitos produtores desistiram, mas em conseqüência houveram novas adesões. “O que demonstra que o Projeto é bom e tem dado bons resultados”, menciona o pesquisador.

Viabilidade do Projeto: É para todos, mas não para qualquer um.

Dentro do Projeto CATI Leite, o objetivo maior é também a capacitação treinamento de técnicos dos Estados e Municípios veiculados à Secretaria da Agricultura, interessados na viabilidade da produção leiteira. Além de um acompanhamento da propriedade, durante as visitas eles têm a finalidade de checar se o que foi combinado em visita anterior fora executado e fazer novas combinações, para a execução de outras técnicas. Para isto, eles realizaram uma visita mensal, e assim o projeto se desenvolve. “Estas ações oferecem aos pecuaristas a oportunidade de acesso aos mercados mais exigentes e mais rentáveis que os atuais. Na pecuária leiteira, os produtores ficarão capazes de cumprir a Instrução Normativa 51 (Portaria 56) do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), que orienta o processo de compra das grandes empresas de laticínios”, conclui o pesquisador do Projeto CATI Leite, Dr. Jovino Paulo Ferreira Neto.

No entanto, entre os objetivos de difundir tecnologias sustentáveis para uma pequena área de produção, de modo que a propriedade tenha benefícios econômicos, existe também a preocupação com a preservação ambiental. “À medida que se faz o uso adequado da propriedade, há um planejamento da ocupação sustentando do solo, possibilitando que haja áreas para garantir a preservação ambiental”, diz o pesquisador.

Ele também enfatiza que o foco do Projeto não são os animais, nem a propriedade, mas o produtor. “Nosso objetivo primordial é recuperar a sua auto-estima, reduzir o êxodo rural e, conseqüentemente, aumentar a produtividade. Não é uma missão fácil, pois o produtor deve querer mudar”. O principal argumento para isso é a visita às propriedades chamadas “salas de aula”. Há uma em cada município participante. “Quando o produtor vê alguém que já esteve na mesma situação, ou até pior, e conseguiu reverter, ele percebe que também pode”, explica Neto. “Costumo dizer que, o projeto é para todos, mas não é para qualquer um. Para que o produtor possa aderir ao programa é preciso que haja assistência técnica comprometida e a sua disposição para mudar a situação, que ele considera não satisfatória em sua propriedade”, argumenta.

No município de Guarantiguetá (SP) fica outra propriedade que se adaptou ao Projeto há quatro anos. O Sítio Primavera possui uma área total 5,5 hectares, sendo que 3,6 ha são utilizadas para área de pastagem; envolvendo pastejo em tifton, pastejo napier e 1 ha de cana-de-açúcar, que está sendo substituída por uma nova variedade de cana – a RB 855536 (que oferece mais qualidade, produtividade e é resistente às doenças). O restante é destinado para sombreamento das vacas e bezerras, residência dos produtores e para matas ciliares. “Antes a terra era bruta, só tinha cupim e muita formiga. Começamos a trabalhar aqui com 30 animais, sendo 20 vacas”, conta a produtora Sra. Maria Helena Silva Assis. E o que mudou? “Tudo. Após a implantação do projeto, a mudança foi radical. Substituímos, até sete vacas que era improdutiva”, diz.

Para o engenheiro agrônomo Márcio Aurélio Fontes Ferreira, da Prefeitura de Guaratinguetá, que dá assistência ao Sítio Primavera e aos demais produtores da região, é importante ressaltar que o foco não é a compra de novos animais, mas sim a qualidade da alimentação oferecida ao rebanho. “Conseqüentemente as vacas que têm potencial para produzir leite, mesmo comendo bem, e não produzem, é solicitado ao produtor que a substitua. Em geral, o produtor faz troca de duas por uma. O segredo aqui é a alimentação de qualidade. Perante isto, o gado chega a produzir até cinco vezes mais”, argumenta o engenheiro. “A palavra de ordem é lucratividade. Logo no início da implantação do Projeto, Dona Maria Helena tinha prejuízo de R$ 0,30, por litro de leite. Mesmo com investimento alto para a implantação do Projeto, o prejuízo foi revertido para R$ 0,15 de leite produzido. Hoje, chega ao patamar de R$ 0,25 de lucro líquido”, conta Ferreira.

As transformações ocorreram no primeiro estágio do Projeto. “Primeiro, formamos o pasto de tifton, o canavial e o pasto fracionado, que hoje são divididos em dois módulos, um com 18 e outro com 20 piquetes. Com 15 vacas em produção chegamos a 340 litros/leite/dia. A gente se admira, pois com pouca terra, produzimos isto tudo”, explica Dona Maria Helena. Muito satisfeita, ela nos conta pagou recentemente a última parcela do tanque de expansão de 500 litros, para armazenagem do leite. E ao lado do esposo, Ariberto Silva Assis, pretende ir mais além. A produtora seguiu as orientações dos técnicos e hoje no comando da produção de leite, ela diz: “Temos um retorno positivo. Conseguimos a qualidade que antes não existia. Temos qualidade no pasto e que se transforma em leite”, afirma a proprietária do Sítio Primavera, que destina também a produção de 280 litros/leite/dia para Cooperativa de Laticínios de Guaratinguetá.

De acordo com o pesquisador da CATI, Dr. Jovino Neto, se houver uma racionalização – o principal trabalho deste projeto – e haver uma assistência técnica, onde há um diálogo entre produtor e técnicos, todo o gasto consegue ser revertido no aumento da produção e assim maior ganho. “Mas, um dos entraves do projeto e o processo lento e individual: cada produtor tem uma realidade. A metodologia deste trabalho disponibiliza três tipos de tecnologia, entre eles a da produção. O Projeto usa a tecnologia simples no qual os produtores, na maioria das vezes já fazem, mas ele é inovador quando ele organiza todo o método de produção”, finaliza.

“Dê olho Vizinho”

De acordo com o pesquisador da CATI, os resultados são positivos. “Nós costumamos dizer que temos vistos mudanças acontecerem, seja na vida do produtor ou na propriedade”, diz Dr. Jovino Ferreira Neto, que também aponta que muitas propriedades dedicadas ao Projeto, dentre três a quatros anos se tornam auto-suficiente.

O melhor do projeto também são os frutos que geram, como o Dia de Campo, onde os técnicos da CATI e pequenos produtores, futuros adeptos ao Projeto CATI Leite – visitas as propriedades modelos – que serve de campo para mostrar a produção de leite em sistemas de rotação de pastagem. “Quando trazemos isso para o contexto da agricultura familiar, onde as propriedades na grande maioria, de pouca infra-estrutura e quase nenhum dinheiro para investir, o leite figura como uma atividade para lá de interessante”. “O trabalho é contínuo. Se tiverem visitantes, é que há mais interessados no Projeto. E sinal que existe pessoas avaliando bem”, conclui o pesquisador.

Um dos que participaram do Dia de Campo, Francisco Cláudio Salgado, da cidade de bananal (SP), já criou boas expectativas. “E preciso conhecer, ver o que está pronto. Vai muito de cada caso, é preciso ter acompanhamento técnico constante e seguir as orientações. Mas, vale a pena”, diz.

Para outro produtor da cidade de Bananal (SP), Victor Bocola Amorim, é muito interessante acompanhar uma propriedade que já esteja dentro do programa. “Sempre achamos que sabemos muito, mas não é a realidade. É vivendo e aprendendo, no que se pode melhorar… e aonde tem que acertar”, enfatiza.

Cada caso é um caso

A maior dificuldade, segundo os especialistas está em realizar esse trabalho de transferência de tecnologia para o pequeno produtor. Para participar, o produtor deve procurar a Casa de Agricultura do Município, que cadastra o interessado. Depois, é assinado um termo de compromisso, que garante a visita do técnico à propriedade e define os direitos e deveres do produtor. “Faz-se um levantamento com todos os fatores de produção, que dá parecer geral da área de produção. Isso serve, por exemplo, para saber onde é melhor instalar os piquetes”, comenta o pesquisador Dr. Jovino Ferreira Neto.

Para participar do Projeto, o interessado deve apresentar as seguintes características: ser pequenos produtores e agricultores familiares, ter renda exclusiva da produção agrícola, e o mais importante mostrar-se receptivo a implementação de novos conceitos de produção intensiva de leite. A partir daí, o produtor participante visita uma propriedade, a Unidade Demonstrativa (UD).

O próximo passo é fazer análise de solo para saber a sua qualidade. Um terceiro passo refere-se à sanidade do gado, com a realização de exames de tuberculose e brucelose. “A partir daí, o produtor pode começar a planejar a propriedade. O produtor escolhido responde a um questionário que vai mostrar sua realidade técnica, ambiental, social e econômica. Tudo isso são condições indispensáveis para que o produtor comece a participar do programa que hoje transforma em realidade os sonhos de muitos pequenos produtores de leite”, finaliza o pesquisador da CATI de Guarantiguetá.

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