Uma filosofia de trabalho une cerca de 50 pecuaristas de corte em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Esse sistema é descrito pelos pesquisadores, Flávio Dutra de Resende e Ricardo Signoretti Dias, da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), como “aquele em que sejam adotadas tecnologias que façam uso sustentável dos recursos produtivos, onde haja preservação e ampliação da biodiversidade do ecossistema local, conservação do solo, água e ar.
Além disso, deve ser independente em relação a fontes energéticas não-renováveis e eliminando os insumos artificiais tóxicos, como os agrotóxicos, organismos geneticamente modificados e outras substâncias contaminantes que possam prejudicar a saúde da população e o meio ambiente” – É a agropecuária orgânica.
Para ser qualificado como um produtor de carne orgânica, o pecuarista tem de ser certificado pelo Instituto Biodinâmico (IBD), órgão responsável pela emissão de parecer técnico sobre a propriedade e o selo com o qual classificará o produto.
Para Alexandre Borges Oliveira, da fazenda Vale Formoso, em Tangará da Serra (MT), a pecuária orgânica de corte surge como uma alternativa de pleitear maiores rendimentos na produção, o que gira em torno de 10% a mais no preço da arroba do animal. Oliveira trabalha com o pai, Ricardo Bruniera Oliveira – que está na criação de gado desde os anos 1970. Eles começaram a produção do boi orgânico em julho de 2004.
“Não houve dificuldades para se enquadrar nesse estilo de produção”, diz Alexandre. “Na verdade nós já tínhamos a filosofia de trabalho na pecuária, com todos os funcionários devidamente registrados, com carteira assinada, os filhos deles tinham de estar na escola, no nosso pasto não se usava agrotóxico. Tivemos, sim de mudar algumas coisas, mas nada que representasse um esforço”, conta o pecuarista.
Técnicas de manejo
O sistema de produção da carne orgânica requer uma atenção especial seja no tratamento com o gado, seja na garantia de condições de trabalho adequada aos peões e tratadores dos animais, seja com uma consciência ambiental. “Temos de garantir um padrão de vida aos funcionários, e também ao gado. Não podemos dar choque no animal, não estressar o gado, com gritaria, tudo isso são normas estabelecidas para a criação do boi orgânico”, explica Oliveira.
Em relação ao controle de sanidade animal, nesse sistema são dadas todas as vacinas obrigatórias estipuladas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e o controle das doenças é feito através da homeopatia [sistema terapêutico em que se tratam doenças com substâncias dadas em doses muito pequenas capazes de produzir em indivíduos sãos sintomas semelhantes de indivíduos doentes, no sentido de fortalecê-lo] e alopatia [sistema terapêutico que trata as doenças por meios contrários a elas]. No controle de endoparasitos, por exemplo, o pecuarista utiliza o nim, uma planta indiana que funciona como um vermífugo natural. A partir dela, é produzida uma massa, resultado da trituração das sementes da planta, que é colocada junto com o sal mineral.
Para o controle de moscas-do-chifre, utiliza-se essência de alho, que é passado no rebanho e que expele a praga. Segundo Alexandre, são medidas que funcionam, não sendo muito comum a incidência de doenças no rebanho. “Utilizamos todos os recursos oferecidos pela homeopatia, mas quando não dá para solucionar o problema, utilizamos o tratamento com medicamentos veterinários. A partir daí, o funcionário faz uma notificação, o animal tratado passará pelo período de desintoxicação, o IBD é notificado para saber o que aconteceu com a rês”, explica.
O manejo com o gado acaba sendo mais fácil, de acordo com Alexandre. “O rebanho tem de ser tratado com capim bom. Fazemos a rotação de pastagem para ajudar nesse processo, produzimos a cana orgânica para servir como volumoso, mas, há dois anos isso não tem mais sido necessário fazer”, diz. O sombreamento no pasto também é importante. “E o gado gosta, quando tem árvores no pasto, lá estão eles, debaixo da sombra, isso é garantia de melhor trabalho na pecuária e garante uma qualidade na hora do abate”.
Raça forte e preservação da mata
Lá na fazenda Vale Formoso o Nelore e o Tabapuã se provaram as raças resistentes pelo clima e garante a produtividade no sistema orgânico. “Se você coloca um cruzamento industrial, numa região muito quente como a nossa, que a incidência de carrapatos é maior, pode ter certeza, os carrapatos vão todos para esse tipo de animal. O que não acontece com a raça Nelore que é mais resistente”, explica Alexandre. “Hoje se busca muito o abatimento de um animal com 18 arrobas ou mais, e isso leva um tempo maior. Nós abatemos com 16 arrobas, e por isso produzimos uma carne mais macia e livre dos medicamentos e agrotóxicos da alimentação do animal”.
Em meio à produção, um trabalho de preservação da mata na região é preconizado na propriedade. “A área da fazenda que está sendo destinada à Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) possui 313 hectares. Essa área é apenas de uma fazenda, existem outras de associados que também estão em processo de criação das reservas”, conta Alexandre. Entre as espécies, há o Ipê Amarelo, o Ipê Roxo, o Louro, a Embaúba, o Jenipapo, o Angico Branco, o Ingá, o Barbatimão, o Buriti e o Pau-e-óleo. Esse trabalho conta com o apoio da Embrapa e do WWF, Organização Não-governamental voltada à preservação da fauna e flora.
Associativismo
Duas entidades reúnem os produtores de carne orgânica – em Mato Grosso, a Associação Brasileira de Produtores de Animais Orgânicos (Aspranor), e em Mato Grosso do Sul a Associação Brasileira de Pecuária Orgânica (ABPO). O grupo fechou uma parceira com a empresa JBS-Friboi, a qual produz a linha ‘Organic Beef’. Foi um diferencial para os produtores, segundo Henrique Balbino, presidente da Aspranor. Com um mercado disposto a comprar um produto diferenciado a produção ficou mais respaldada.
Para o presidente da ABPO, Leonardo Leite de Barros, a melhor estrutura da associação promove um melhor desempenho na pecuária orgânica. “A nossa associação está em fase final elaboração de um grande protocolo interno”, destaca. “Nele além das normas orgânicas estamos traçando parâmetros de processos produtivos particulares e assumindo responsabilidades sócio-ambientais próprias com o nosso ambiente e colaboradores”, diz. “Temos como princípio produzir carne de qualidade com o menor impacto possível e uma busca permanente da manutenção da nossa cultura”.
Para Barros ainda há resistências por parte do próprio governo, com muitas fiscalizações e exercendo poder de polícia. “Gostaríamos de ver uma mudança de conduta, o Estado dando exemplo de consumo responsável. O poder público é responsável por 15% de tudo que se consome de produtos e serviços neste País, transformar as escolhas dos nossos consumidores no sentido de criar uma cultura de buscar produtos sustentáveis é a forma mais barata e viável para diminuirmos nossas emissões na produção”.
Avaliação do sistema
A Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), unidade de pesquisa da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, em parceria com o Sindicato das Indústrias do Frio no Estado de São Paulo (Sindifrio), com apoio financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério de Ciências e Tecnologia, desenvolveram o projeto de “Avaliação de Sistema de Produção de Bovinos de Corte sob Manejo Orgânico”. De acordo com Flávio Dutra de Resende, Apta, o projeto teve início em 2003 e foi encerrado no ano passado.
Foram avaliadas alternativas de produção, desde utilização de leguminosa (feijão guandu) via “banco de proteína” para suplementação dos animais no período da seca (sistema 1), suplementação com concentrado no período da seca à base de 20% da matéria seca ingerida pelos animais (sistema 2) e somente pastagem (sistema 3). Os três sistemas foram constituídos de seis piquetes cada, com período de permanência dos animais de sete dias por piquete e descanso de 35 dias. Tendo uma área central contendo água e sal mineral à vontade.
O instituto apontou que os resultados demonstraram a viabilidade de se produzir animais sob manejo orgânico, desde que bem manejados, utilizando-se raças adaptadas. Os ganhos médios diários de peso dos animais, em função dos sistemas avaliados (1, 2 e 3) durante o período das secas de 2004, foram de 520, 470 e 350 gramas/cabeça/dia para os sistemas 1, 2 e 3, respectivamente. A taxa de lotação média (cabeças por hectare) é de 1,7 Unidade Animal (UA) por hectare. Todos os animais receberam produto homeopático para controle de endo e ectoparasitos.
Os orgânicos pelo País
A produção orgânica no País é bem diversificada, e está regulamentada através da Lei nº 10.831 (23 de dezembro de 2003) e pelo Decreto nº 6.323 (27 de dezembro de 2007). Segundo o levantamento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), a agropecuária orgânica no Brasil ocupa uma área cultivada estimada em 800 mil hectares, com cerca de 15 mil produtores. Há uma estimativa de que 5 milhões de hectares de áreas com extrativismo que poderiam ser considerados orgânicos.
A região Centro-Oeste possui o maior índice de área com agropecuária orgânica certificada, com 39%. É seguida pela região Sul (29%), Nordeste (17%), Sudeste (14%) e Norte (1%). Os principais produtos orgânicos, por grupo, são:
Frutíferas – goiaba, mamão, manga, maracujá, banana, uva, morango e citrus;
Olerícolas – alface, couve, tomate, cenoura, agrião, berinjela;
Culturas – arroz, soja, milho, trigo, mandioca, café, cacau e cana-de-açúcar;
Produção animal – carne (bovino e suínos), aves, leite, ovos, peixes e mel;
Extrativismo – palmito, castanha do Brasil, castanha de cajú, açaí e babaçu.
O jeito orgânico de ser
Princípios gerais para a criação animal e produtos de origem animal
• O manejo de animais deve ser considerado como parte integrada de um organismo agropecuário diversificado.
• A criação animal deve contribuir para cobrir a demanda de adubo animal da atividade agrícola da propriedade, criando uma relação solo-planta-animal de reciclagem.
• Deve haver sustentabilidade entre produção animal e produção de seus alimentos.
• Na combinação do uso de leguminosas, forragens e estercos, cria-se uma relação entre agricultura e pecuária que permitirá sistemas de pastagem e agricultura favoráveis à conservação e melhoria da fertilidade do solo em longo prazo.
• O manejo da criação deve levar em consideração o comportamento natural do animal.
• As espécies e raças de animais escolhidas deverão estar adaptadas às condições locais.
Conversão das propriedades
Para a comercialização com o Selo “Orgânico Instituto Biodinâmico”, deverá ser observado o seguinte:
• Pastagens e forragens: áreas de pastagem poderão ter período de conversão reduzido para doze meses se, em período de pelo menos três anos anteriores (a ser provado com documentação e análises), não se utilizou nenhuma substância proibida por estas Diretrizes.
• Os animais pré-existentes na propriedade e suas crias também deverão passar por período de conversão.
• Em propriedades que estão se convertendo para o sistema orgânico e desejam iniciar a atividade de pecuária, as áreas de produção de forragem, pastagem e os animais comprados de qualquer origem que ainda não seja certificada poderão passar pela sua conversão simultaneamente, de acordo com os períodos estipulados abaixo: bovinos, para produção de carne devem passar no mínimo ¾ de sua vida em sistema orgânico, sendo que o período absoluto mínimo é de 12 meses;
Origem dos animais
• O estabelecimento de rebanho adaptado ao sistema orgânico de produção deve ser visto como o ideal a ser buscado. Transplantes de embrião e o uso de animais geneticamente modificados através de engenharia genética são proibidos.
• Os animais devem ser originários de unidades de produção orgânica. Quando animais orgânicos não estão disponíveis o IBD poderá autorizar animais convencionais comprados para certificação como orgânico.
• Os bezerros de corte adquiridos de outras propriedades deverão nascer em áreas certificadas orgânicas e de matrizes introduzidas no sistema orgânico pelo menos três meses antes de seu nascimento.
• A compra de animais para renovação de rebanho (matrizes) será autorizada até no máximo 10% do rebanho para bovinos.
Porcentagens maiores serão autorizadas conforme o caso quando ocorrer catástrofe climática, expansão de lotes, introdução de um tipo diferente de manejo. [O texto na íntegra sobre as principais diretrizes do IBD (2004) para produção de carne bovina orgânica pode ser conferido pelo sítio de Internet http://www.sic.org.br/organico.asp].