Um estudo da FAO-Organização para Agricultura e Alimentação, das Nações Unidas, de maio último, não descarta a criação de um oligopólio ao assinalar que “apenas 10 empresas transnacionais investem US$ 3 bilhões, por ano, em engenharia genética. Brasil, China e Índia, juntos, não gastam mais que US$ 500 milhões anuais, em pesquisas nessa área.” Chama a atenção, ainda, ao fato de que as experiências voltadas para a agricultura, deveriam complementar e não substituir as tecnologias anteriores, lamentando “não haver interesse em resolver o problema do pobre.”
No Brasil, o processo de recuperação está sendo viabilizado pelo MPA-Movimento dos Pequenos Agricultores, fundado no Rio Grande do Sul, em 1996. Na ocasião, uma grande seca “castigou severamente as plantações, com enormes prejuízos para os produtores.” A demora no atendimento das reivindicações foi um incentivo para a fundação, conforme Charles Reginatto, da coordenação nacional. “Houve um cansaço com acordos e conchavos políticos, feitos entre dirigentes sindicais e da Federação dos Trabalhadores, na negociação de soluções que nunca chegavam até a roça.”
O trabalho de restauração envolve cultura voltadas para a subsistência, como arroz, feijão, milho, soja, trigo e algum investimento em avicultura. Com orientação e acompanhamento de técnicos e agrônomos, o método consiste de uma “seleção basal extratificada, no qual, para ter qualidade e boa produtividade por hectare, o melhoramento demora, em média, de três a quatro anos”, conta Reginatto. Algumas experiências de campo, feitas pela Epagri (Empresa de Pesquisa Agrícola), do governo de Santa Catarina, e em laboratório, pela UFSC-Universidade Federal de Santa Catarina, mostram resultados promissores. “Na colheita, algumas variedades de milho chegaram a produzir até 130 sacas por hectare e, nos experimentos acadêmicos, estão sendo feitos testes com 25 variedades, com avaliação de 60 características de cada uma delas”, assinala.
Outra intenção da proposta, segundo o coordenador, é fazer a transição do modelo convencional de produção para o “agroecológico ou orgânico, buscando tornar os agricultores independentes dos agrotóxicos, permitir que assumam o controle das sementes e levá-los a recuperarem a cultura, a auto-estima, criando, enfim, uma identidade coletiva.”
Lavouras populares não atraem
A escolha dos produtos parece acertada, pois a FAO reconhece que “não há investimento, público ou privado, em novas tecnologias para lavouras de sustento como milho branco, sorgo, mandioca, batata, arroz e trigo, que apresentam poucos atrativos, em termos comerciais.” Jacques Diouf, secretário do organismo, vai mais longe e assegura que “existe pouca atenção aos legumes, vegetais em geral, ração animal. As pesquisas com a enorme diversidade de frutas tropicais são mínimas.” Nada esta sendo feito, frisa, em relação a cultivos industriais ou “a certas características como resistência/tolerância à seca, ao alumínio, à salinidade e maior teor nutricional.”
O potencial lucrativo faz com que, “tanto os governos, quanto as empresa, invistam em monoculturas”, constata Diouf ao alertar, ainda, que “a pequena quantidade de tecnologias de modificação genética em uso, mostra o perigo de que haja uma concentração seletiva de produtos.” Os transgênicos ocupam, hoje, 44,2 milhões de hectares, 75% em países industrializados, priorizando a soja, milho, canola e algodão. Uma extensão ínfima é ocupada por batata e mamão papaya, “com genes para retardar a maturação e tolerar diversos tipos de vírus.”
Conquanto atue num ramo menos sofisticado, Reginatto concorda com Diouf. Não há ausência, mas seria melhor se houvesse um suporte financeiro mais efetivo e consistente, por parte do governo. Segundo ele, o Estado ajuda com assistência técnica e pesquisa, fornecidas pela Epagri e o município, com um técnico de nível médio. “Não existe uma linha de crédito específica para a operação de resgate, melhoramento e multiplicação de sementes crioulas. Há uma oferta de recursos pela Conab-Cia. Nacional de Abastecimento, através do sistema de compra antecipada de produtos. Também o MDA-Ministério do Desenvolvimento Agrário, contribui concedendo empréstimos via Pronaf-Capacitação (Progama Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).”
O coordenador do MPA desconhece quanto dinheiro foi aplicado, até agora, nesse projeto. Mas afirma que acompanhamento técnico, capacitação e formação do agricultores têm um peso maior nos custos e que as outras despesas saem do bolso do próprio produtor. Esses gastos por conta do camponês, segundo ele, são suportáveis. A implantação de um hectare de milho exige, no máximo, R$ 300,00. “Depois de colhido, o retorno pode ser bom. Principalmente se a produção for vendida para semente. Com a venda R$ 1,50/kg, o lucro pode chegar a R$ 5 mil/ha. Então compensa, pois o investimento é baixo e o custo-benefício é alto”, arremata.
Como a meta é obter produtos ecologicamente corretos, há todo um elenco de procedimentos para que esse resultado seja alcançado. Como exemplo, Reginatto diz que, no plantio, o preparo do solo é feito com cobertura verde, “que pode ser a mucuna, que fixa nitrogênio e substitui a uréia, que é usada para desenvolver a parte aérea da planta.” Isso ajuda descontaminar a terra dos resíduos químicos e facilita a transição para o sistema orgânico. É preciso, sempre, tomar o cuidado para não plantar próximo a lavouras convencionais. Caso isso seja difícil, o jeito “é semear em períodos diferentes, para impedir que as plantas fecundem na mesma época.”
Tentativas de boicote ao resgate
A aplicação de adubos e defensivos comerciais, durante o manejo das lavouras, “é totalmente abolida. Em substituição, é feito a rotação evitando, por dois anos consecutivos, o plantio de uma mesma cultura numa determinada área. Nos tratos culturais são usados produtos alternativos, como biofertilizantes, e defesas naturais contra pragas.” Após a colheita, a produção é comercializada em mercados locais, em associações de agricultores e sindicatos de trabalhadores ligados ao MPA, além das aquisições da Conab. Uma parte dos grãos é separada como semente que, depois de acondicionadas em “bombonas”, é vendida a produtores. A outra é negociada in natura ou manufaturada (basicamente farinha).
A aceitação do público consumidor “é muito boa”, diz Reginatto. Porém, acrescenta, pelo fato “de ser um produto diferenciado e em pequena escala, é posto em oferta com um valor maior que o comumente praticado pelos convencionais ou industrializados. Isso acaba restringindo um pouco o acesso, pois o poder aquisitivo da população está em queda. Mesmo assim, pessoas de baixa renda acabam consumindo, talvez por questões culturais. Quem não gosta de um rizoto de galinha caipira? Uma sopa ou o famoso bródio, com esse tipo de ave?, indaga.
Apesar de utilizar princípios rudimentares de produção e comercialização, ou talvez até por isso mesmo, Reginatto aponta a existência de oposição a uma propagação maior da proposta. “Não é uma resistência declarada, ostensiva. Mas soubemos que as sementeiras estão de olho. A reserva não acontece no Estado ou no País. Até porque, a experiência é muito localizada. Mas é justamente na região que as objeções são mais fortes”, garante.
As campanhas tentam desacreditar o projeto, alegando que “as sementes crioulas não são produtivas, que a distribuição está proibida, que não têm autorização para ser comercializada, que os comerciantes não compram e, ainda, que a assistência técnica tradicional é mais eficaz.” Reginatto também indica que a indústria do tabaco se mostra um tanto incomodada, pois “os técnicos das fumageiras dizem que, economicamente, é mais viável plantar fumo. Isso já é um enfrentamento, não?”
Um outra forma de ação contra o resgate, por parte da indústria das sementes, é a tentativa de envolver e cativar as comunidades, “através das agropecuárias, com a realização de churrascos, doação de jogos de camisa para times de futebol, entrega de brindes para os clubes de mães sortearem no bingo ou no bolanzinho e, também, por intermédio dos programas implantados e desenvolvidos por municípios e pelo governo estadual, que praticam o troca-troca de semente.
Pirataria com milho mexicano
No México, conforme Reginatto, não se trata mais de oposição, mas de pirataria pura. Segundo conta, ele esteve no país asteca para conhecer algumas experiências idênticas às executadas no Brasil. “Os mexicanos estão resistindo para não perder tudo o que, historicamente, camponeses e índios conservaram de sementes crioulas. Mesmo assim, algumas empresas multinacionais pegam o grão e, com o argumento de que vão fazer pesquisas, conseguem patentear o produto.” No Brasil, recentemente, ocorreu caso semelhante com o cupuaçu, que foi patenteado por uma transnacional japonesa. O governo brasileiro entrou na justiça, ganhou a causa e o fruto retornou à nacionalidade tradicional.
Ainda a propósito do México, diz a lenda que o milho é originário daquela região. Com a entrada em vigor do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), o país perdeu seu banco genético do produto, que era considerado como o maior e mais completo do mundo. Essa perda é atribuída ao ingresso dos transgênicos. Também na Guatemala, o milho nativo sofre ameaça de extinção com a introdução de organismos modificados, colocados no país pela ONU, que distribui produtos doados. Tanto o México como a Guatemala, são considerados reservas genéticas da gramínea.
O resgate de semente crioula também acontece no Equador, onde foi realizado, em julho último, o Forum Social das Américas. No evento, o tema foi debatido com promoção da Via Campesina, à qual o MPA é filiado, sob a palavra de ordem “semente, patrimônio dos povos, a serviço da humanidade”, lançada no Forum Social de Porto Alegre. A campanha ocorre em âmbito internacional.
As experiências mais avançadas desse trabalho de recuperação, conforme Reginatto, “estão em Santa Catarina, não região do extremo-oeste do Estado.” Cerca de “200 famílias estão mobilizadas nessa operação e empenhadas na expansão, em nível nacional, e massificação dos objetivos.” Ao que diz, em 2000, o MPA possuía representantes em cinco Estados “e hoje, marcamos presença em dezessete, embora o Sul tenha maior visibilidade.”
Para o coordenador, que é produtor rural em São Miguel D’Oeste (SC), o movimento teve uma rápida aceitação porque “tem obtido resultados concretos, num momento em que o desemprego e a fome crescem nas cidades.” Entende que a atual situação “é causada pela política agrícola adotada pelo governo, que apóia as empresas multinacionais e esquece os pequenos agricultores.” Uma das metas é construir um novo modelo de agricultura familiar, inclusive como forma também de resgatar essas famílias camponesas “do empobrecimento e da marginalização.”
MPA/O que é
Charles Reginatto nega que o MPA seja parceiro do MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, embora admita que “existe uma boa relação” entre ambos. Segundo ele, os pequenos agricultores têm organização própria, “autonomia política e direção diferenciados.” A atuação se limita a comunidades rurais, apesar de estar iniciando “algumas experiências em assentamentos rotativos.”
Contando um pouco da história do movimento que coordena, diz que, em linhas gerais, o MPA é social, autônomo, de massa, organizado e dirigido por pequenos produtores “que lutam pelo resgate da identidade camponesa e elaboração de um novo projeto para a agricultura brasileira.” A base é formada por famílias de camponeses que produzem alimentos para o autoconsumo e para o abastecimento do mercado interno do País, calcados na agroecologia. Na área de influência do grupo, a produção, em maior escala, contempla feijão fumo, leite e milho.
“O descontentamento com a representatividade das organizações já existentes”, foi um dos fatores que estimularam a criação do movimento. “Muitos dirigentes sindicais aderiram ao MPA, pois continuavam na roça e sofriam as ameaças contra a pequena produção. Ao perceberem a inutilidade do modelo tradicional de luta sindical, não aceitaram transformar os sindicatos em executores de políticas oficiais compensatórias, especialmente na previdência e na saúde.”
Reginatto lembra que o planejamento da manifestação dos atingidos pela seca (em 1996), “levou de roldão muitos sindicalistas que estavam em cima do muro. Houve uma ruptura política entre os que optaram pelo acordo, sem pressão, e os que decidiram acampar nas rodovias, exigindo soluções. Isso foi um divisor de águas, pois agricultores e dirigentes perceberam os limite, inclusive geográficos, das organizações a que pertenciam.” Para ele, os produtores têm necessidades comuns “que são maiores que os limites territoriais. A estrutura sindical é limitada, pois está cabresteada pelo governo. Diante disso, a saída é construir uma nova forma de organização política do pequeno produtor e isto implica atravessar a abrangência territorial do município.”
O coordenador se utiliza de palavras de ordem para afirmar que a capacidade de organizar lutas é uma alternativa “para obrigar” o governo a solucionar problemas. Daí ao repúdio à ingerência de “sindicatos pelegos na condução das manifestações”, é um passo. Para ele, o melhor meio para obter vitória “é estar organizado enquanto classe social e movimento. Por isso, buscamos apoio em todos os setores da sociedade. Nossos aliados estratégicos, no campo e na cidade, serão aqueles dispostos a enfrentar, junto com o povo, o neoliberalismo.”
Reginatto acredita que “inserido num contexto social, cultural, econômico e político, o camponês é capaz de refletir sobre o mundo e transformá-lo através do trabalho e das ações políticas. Analisando profundamente a realidade camponesa, nos mais diversos aspectos, poderão ser construídas as bases para a transformação da agricultura”, sentencia.