Agricultura

Terras: a luta pela terra no Brasil é secular

Um recuo no história mostra que José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, era favorável a uma melhor distribuição fundiária, com defesas veementes sobre o tema. Porém, parece ter tido pouco fôlego, pois uma capitulação estratégica acabou beneficiando as elites da época.

Mais recentemente, em Pernambuco, Francisco Julião, nos anos 50/60, propunha uma reforma agrária “na lei ou na marra”. Com o golpe de 64, foi cassado e, com ele, suas idéias. Líder das polêmicas “Ligas Camponesas”, de forte atuação no Nordeste, tinha bandeiras reivindicatórias que parecem inspirar o também não menos polêmico MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que há 20 anos tenta mudar o perfil das propriedades rurais.

Após o fim da ditadura, em l984, o primeiro governo civil, eleito indiretamente, montou um forte aparato e conseguiu mobilizar a opinião pública em favor de um novo desenho no campo. José Sarney, o presidente do turno, não só não obteve êxito na empreitada, como considerou que o Brasil “estava menstruado” devido ao quadro existente de quase conflagração.

Neste 2004, o clima de guerra é retomado, com as ‘batalhas’ previamente anunciadas. O MST, no início do ano, reitera a intenção de ‘combate’ às grandes propriedades e comunica o propósito de fazer um “abril vermelho”, uma alusão à bandeira do movimento, para relembrar o “massacre de Carajás”. De fato, até o final do mês foram contabilizadas mais de 100 ocupações em 17 Estados.

Para ministro, as invasões “azucrinam”

Exceto pela violência exacerbada, na qual o pobre segue como “sparring”, pouca coisa mudou. Balanço da CPT-Comissão Pastoral da Terra, mostra que, em 2003, morreram 73 pessoas nos vários confrontos registrados. Mais do que o dobro de 2002, quando ocorreram 29 mortes. A pedra de toque da cruenta questão: poucos com muita terra e muitos sem nada.

O problema existe, é grave e, segundo o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, está entre os que “mais azucrinam” os produtores. Ao que diz, esse assunto “nos incomoda bastante, pois está ligado à garantia do direito de propriedade, que tem a ver com o mercado, com investimentos estrangeiros e, de uma forma muito contundente, preocupa os agricultores nacionais e o Brasil inteiro.”

As afirmações do ministro foram feitas durante seminário promovido pela BM&F-Bolsa de Mercadorias & Futuros, para discutir as perspectivas do agronegócio. Para ele, “são tantos os assuntos que azucrinam e perturbam, que não há razões para que outras ações azucrinem o setor.” O presidente da República, acrescentou, “tem convicção de que o Brasil precisa fazer uma reforma agrária, com a qual estamos todos de acordo, mas dentro do império da lei.”

Rodrigues reconhece que “erros repetidos durante décadas e que acabaram levando à exclusão no campo precisam ser reparados, mas através de um projeto consistente, adequado, que garanta renda ao produtor rural assentado e dê a ele um oriente de crescimento e de efetivo progresso material, social e cultural. É isso que precisamos fazer. Porém, não podemos aceitar passivamente que os agricultores sejam infernizados gratuitamente.”

Para o coordenador da Apta-Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, da Secretaria da Agricultura, José Sidnei Gonçalves, “o recrudescimento da crise agrária, neste limiar do novo milênio, na verdade, traz à tona uma questão que se perpetua há mais de 500 anos pela opção do desenvolvimento sem rupturas estruturais nas pseudomorfoses da economia brasileira, que foi industrializada, mas continua presa à economia agrária, pois, de fato, sofreu um processo de agroindustrialização.”

Desigualdade social amplia “vossoróca”

A discussão sobre o tema, afirma, é acalorada, extremada, mas permite duas constatações inegáveis. Uma, diz respeito ao “absoluto sucesso” do desenvolvimento dos agronegócios no Brasil, formando uma das agriculturas mais evoluídas e competitivas do mundo. Os produtos nacionais têm elevado grau de inovações tecnológicas embutidas, sendo superiores em qualidade e produtividade.

A outra, acrescenta, refere-se à “absoluta insustentabilidade do atual grau de desigualdade social, econômica e de renda que vigora na sociedade brasileira, que abriu uma vossoróca que não apenas se alarga em dimensão e aprofunda-se em amplitude, como continua a corroer as base do modelo a montante, fazendo despencar no precipício da exclusão levas inteiras de lavradores e pecuaristas que não encontraram alternativas para sobreviver à derrocada de uma produção submetida à expansão capitalista numa economia globalizada.”

Gonçalves lembra que a agropecuária brasileira é inspirada no modelo norte-americano e não vê, nisso, “qualquer demérito”. Existem, assinala, inúmeras similaridades e, afinal, tanto o Brasil como os Estados Unidos “são economias continentais, ou seja, qualquer que seja a opção de desenvolvimento, o agronegócio se transformará, mas continuará sendo um setor econômico fundamental, do ponto de vista de emprego e de renda.”

Cita, ainda, que a modernização da agricultura teve início nos anos 60, com a internalização e utilização de insumos modernos, como fertilizantes e agroquímicos, além da intensificação do uso de máquinas, que consubstanciaram um processo de mudança no campo, liberando mão-de-obra que seria absorvida na expansão urbano-industrial. Ademais, essa transformação foi efetivada com a adoção de políticas de crédito subsidiado, bem como lastreada por pesquisa pública para a criação de variedades e cultivares que dessem resposta rápida ao novo sistema tecnológico posto em prática. A partir dos anos 80, o subsídio ao crédito foi eliminado, fato que não impediu o crescimento das lavouras nas décadas seguintes.

Outro instrumento, ainda utilizado, é o plano de safra, aplicado pela primeira, no final dos anos 50, pelo governo paulista. De acordo com Gonçalves, 40 anos depois, “a retórica continua rendendo-se a apenas um grupo de produtos, as cadeias de produção de grãos e fibras, com algumas novidades para outras mercadorias, mas sem fugir muito do núcleo original.”

Barrados no baile terão dificuldades

Tanto é verdade, observa, que a área governamental criada para formular e aplicar políticas especiais para a agricultura familiar, “que engloba os barrados no baile da modernidade, os excluídos do campo, baseia-se exatamente nos mesmos pressupostos instrumentais daquela época.”

Para o ministro Rodrigues, esse parece ser um aspecto crucial, pois afirma que “queremos avançar para um plano de safra matricial, não um plano flutuante, ao sabor das necessidades eventuais, deste ou daquele setor. Queremos uma matriz de um plano de safra com instrumentos e mecanismos que, perenes, garantam a estabilidade da atividade produtiva”, disse ele no seminário.

Gonçalves deixa entender que é preciso uma política diferenciada para os agricultores familiares. Ele ressalta, nesse contexto, que o MDA-Ministério do Desenvolvimento Agrário, traça “a mesma linha do Ministério da Agricultura, para os mesmos grãos e fibras, numa leitura quase de uma política dirigida para os que ainda não são, mas serão, agricultores empresariais. Isso porque, em síntese, se for bem sucedido, em termos de incremento de renda, certamente o beneficiário do MDA passará a ser atendido pelo MAPA.”

O coordenador da Apta acredita que, “nos moldes apresentados, os impactos da política para a produção familiar podem ser pífios, pois partem de uma proposta inconsistente, além de não significar solução adequada para os contemplados que só terão sucesso se mudarem de lado, tornando-se lavradores empresariais.”

Em linhas gerais, diz que todo o instrumental tem como objetivo um dado padrão agrícola de produção, centrado nos “desígnios da escala, sustentado no uso de insumos, máquinas e outras técnicas modernas.” Conforme afirma, esse modelo está implantado no Brasil, “com absoluto sucesso, a soja e o milho são exemplos.” Acrescenta que essa agricultura de produtos primários e bens intermediários de baixo valor agregado, associando ganhos em escala com alta produtividade, “nada mais é que o padrão texano de lavouras.”

Modelo estimula concentração

Esse sistema, típico dos “belts”, associa operações mecanizadas com uso intensivo de insumos, produzindo uma dada commodity, com elevado padrão de uniformidade, com cotações cadentes pelo constante aumento da produtividade. “Essencialmente, a renda líquida deve crescer com a elevação da quantidade produzida, diminuindo os custos de produção por unidade num nível mais significativo que a redução dos preços. Ou seja, uma lavoura cujos ganhos de escala determinam a rentabilidade.”

Em economias continentais, assinala, esse método texano “é fundamental para o desenvolvimento, não apenas para sustentar, enquanto bens intermediários, outras cadeias de produção, como o complexo carnes, em especial suínos e aves, como também fornecer esses bens ao mercado internacional. Pelo volume produzido, pela extensão cultivada, o tamanho dessa lavoura, no Brasil, deve ser ampliado, pela importância no emprego, na renda e na geração de divisas.”

Apesar disso, Gonçalves é categórico ao afirmar que “não está no Texas o modelo capaz de romper com o aprofundamento das desigualdades no campo.” Para sanar esse problema e manter a inspiração do Texas, afirma que é importante “uma política eficaz no câmbio, nos juros ações comerciais contundentes, buscando acordos bilaterais e multilaterais que neutralizem os impactos protecionistas dos norte-americanos e europeus na ampliação das vendas externas.” No plano interno, acrescenta, a securitização dos “recebíveis” para financiamento das safras por vendas antecipadas e mecanismos consistentes de seguro de renda, “seriam suficientes para garantir a expansão da produção.”

Nesse contexto, chama a atenção para a diferença nos índices de mecanização existentes na lavoura americana e na brasileira. Essa desigualdade é decorrente das condições climáticas peculiares a cada região, que “inclusive determina distintas possibilidades técnicas de rotação de culturas.” Nos Estados Unidos, o inverno rígido conduz a decisão sobre o tamanho da patrulha de máquinas disponíveis, tomada com base na máxima capacidade de realizar o plantio e a colheita num espaço reduzido de tempo.

Ou seja, tanto o período de plantio como o de colheita, entre outras operações, são condicionados pelas variáveis do clima, com grandes amplitudes sazonais, concentrando os trabalho mecanizados num prazo curto, gerando a necessidade de veículos capazes de obter alto rendimento, permitindo o plantio ou a colheita de toda a área planejada. “Daí uma imensa frota de mais de 4,6 milhões de tratores, resultando em coeficiente médio dado ha/trator muito baixo, indicado elevada mecanização.”

Brasil tem frota adequada

No Brasil, prossegue, não apenas as épocas de plantio e colheita são “muito mais amplas”, como as possibilidades de rotação de culturas são maiores, permitindo que coeficientes médios, em termos de ha/trator, iguais ao triplo dos EUA, consolidem padrões de mecanização semelhantes. “Essa é uma vantagem competitiva expressiva para a agricultura brasileira, em relação à norte-americana.”

Entretanto, observa, se esse é um ponto favorável, é difícil negar sua indução para uma pressão em busca de áreas mais extensas para o plantio, refletindo na necessidade de propriedades maiores. Em outras, palavras, “a mecanização é um estímulo à concentração da terra e, praticamente, exclui a mesma possibilidade de eficiência para pequenos e médios agricultores na produção de grãos e fibras.”

Como reforço de argumento, afirma que “esse aspecto preocupa na medida em que os resultados da política brasileira montada para a agricultura familiar, ao invés de fortalece-la, possa conduzi-la a uma ainda maior perda de expressão.” Uma forma de contornar o problema, sugere, seria o incentivo à formação de empresas prestadoras de serviços motomecanizados, tanto no plantio como na colheita e, também, em operações de pulverizações para o controle de ervas daninhas ou pragas e doenças. Segundo ele, isso “não é novidade e existe em quase todas as zonas de produção, mas de modo pouco desenvolvido.”

Uma outra saída, de acordo com Gonçalves, seria uma agricultura de produtos diferenciados na origem, tendo como base pequenas e médias propriedades intensivas no uso do solo. Para ele, “na busca de um padrão agrário menos excludente, do ponto de vista social, essa é a prioridade nacional latente.” É um esquema centrado não na máquina, mas no homem, “pois, o capital intelectual é um importante fator produtivo.” Provavelmente, pondera, “não resolve a questão social dos atuais excluídos mas, talvez, numa visão estrutura de médio prazo, possa ser a solução para os filhos deles.”

Esse sistema, acrescenta, se enquadra no modelo californiano, que prima pela qualidade já a partir do insumo básico, ou seja, a semente. Além disso, implica existência de um amplo segmento de lavradores “altamente qualificados, com alta capacidade de apreensão da relação água, solo e planta, fundamental para a excelência da produção com qualidade intrínseca. Em outras palavras, é preciso todo o apoio necessário para que o agricultor se transforme num profissional, mesmo. Enfim, que conheça o ‘metier’.”

Questão mostra cinco séculos de latifúndio

Para o coordenador da Apta, com as diretrizes vigentes, “a tentativa de implantar nos assentamentos o modo atual de produzir de grãos e fibras corresponde, com raras exceções, a fracassos anunciados.” As políticas públicas destinadas a uma agricultura com menor índice de concentração de terra e renda, “para serem efetivas, devem aprofundar o desenvolvimento do agronegócio, internalizar a produção de qualidade diferenciada, tendo como meta a gestação de uma nova classe rural”, sentencia.

Gonçalves recua no tempo e afirma que é difícil fugir da comprovação histórica de que, “regra geral, a história da agricultura brasileira retrata a hegemonia plena da grande propriedade territorial.” Em todos os ciclos econômicos importantes, como os canaviais nordestinos, os arrozais maranhenses, os cafezais paulistas e, mais recentemente, nas florestas plantadas do Espírito Santo, da cana-de-açúcar em São Paulo e o plantio de grãos e fibras no Brasil Central, “enfim, a cada novo eldorado, floresce a riqueza resultante da exploração calcada nas grandes extensões.”

A marca de todos esses processos, aponta, “é a concentração da terra e da renda.” A expansão da fronteira agrícola, de modo geral, “concretiza a base empírica que sustenta o argumento recorrente nas análises da crise agrária, repetido à exaustão, de que a história da agricultura, no Brasil, na sua base estrutural, é feita por quatro séculos de latifúndio, agora cinco, se corrigirmos a temporalidade.”

O acirramento atual dos conflitos, comenta, reflete, na verdade, a fase “perene” de uma “crise estrutural da economia e da sociedade, cuja solução vem sendo postergada, sem qualquer exagero, desde o descobrimento. Ela surgiu no Brasil colônia, ampliou-se no Brasil império e aprofunda-se no Brasil República.” Há todo um caldo de cultura no qual se destaca “o apego ao patrimonialismo.” As visões dos envolvidos nesses confrontos se assemelham no seu sentido patrimonial, pois, de um lado estão fazendeiros procurando preservar a posse e, de outro, os excluídos lutando pelo acesso à terra. “Em síntese, cada indivíduo luta pelo patrimônio, tanto os que têm, como os que não têm, mas querem ter.”

Esse quadro de combate, o noticiário sensacionalista e, às vezes, desencontrado, “conduzem à perplexidade, pois, descontados os desatinos promovidos pelos contendores, o Estado de Direito não encontra mecanismos para encaminhar uma solução ao problema e acaba, mais uma vez, pela postergação do equacionamento, como tem sido a história, há mais de 5 séculos. Mais à frente, a questão, varrida para debaixo do tapete, emergirá com igual ou maior força”, finaliza.

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