Ás vezes, precedido pelo toque de um berrante. Em outras, na maioria, ao som de um rangido constante, que lembra um gemido monótono e nostálgico, emitido por carro em que o boi é a principal força de tração.
Embora mencionada com rara freqüência, esse animal ainda existe e é mantido por um universo muito pequeno de fazendeiros e sitiantes com forte apego ao modo de vida á antiga ou nos dias de hoje, ás tradições culturais. Esse tipo de gado é criado quase que exclusivamente para trabalhos pesados e exigidos pelas diversas atividades necessárias para tocar, sobre, uma pequena propriedade.
O manejo desses animais não difere muito do praticado nos tempos coloniais, nas velhas e grandes fazendas de café ou de cana-de-açúcar, onde a força do boi era ou estava entre as principais fontes de energia. Naquela época, nas estradas de terra batida, era comum ver a paisagem recortada por figuras de carreiros tangendo juntas de bois que puxavam carregados de sacas de café ou cana-de-açúcar, em direção á sede da fazenda ou do engenho.
Forte, rústico e resistente, o caracu não exige muito do criador. Basta pasto aberto e muita água boa, de nascente, diz José Roberto de Campos, pequeno produtor e proprietário de um sítio de 13 alqueires, em Jarinú, interior do Estado de São Paulo. Na propriedade, ele, seu filho Cristiano Lemes de Campos, de 14 anos, além de seu pai, Arlito de Campos, de 67 ( 59 dos quais, mexendo com bois), tocam lavouras de milhos, feijão, mandioca, banana e cana-de-açúcar com a ajuda de um pequeno rebanho de caracu e alguns mestiços com gir e holandês, uns outros com jersey.
Boi não liga para ração
A escolha, para as tarefas do dia-a-dia do sítio, recai sobre espécie porque os animais são ideais para carro. O gado caipira é dócil e, quando amansado, obediente. Além disso, a seleção leva em conta o tamanho do animal e o caracu, não só é grande, como também é forte.
Essa opinião encontra eco em Patos de Minas, interior mineiro, onde Onezil Lelis Ferreira (conhecido como Fio) e Abel Gonçalves da Silva (apelidado de Cabrito), que se consideram carreiros de nascença, possuem, uma pequena manada de caracu, sem deixar de dar atenção ao cruzado corraleiro, um boi amarelão, com chifres enormes, também adequado para puxar carros. O motivo da preferência é o mesmo: pouca exigência no trato, força e muito resistente a doenças, diz Gonçalves.
Na alimentação, acrescenta Onezil, não faz questão de ração. É um boi muito rústico, se alimenta, basicamente, de capim napier e cana. Isso parece que é suficiente, diz Gonçalves, pois o animal não pega qualquer enfermidade. Boi carreiro adoecer é novidade. Quando isso acontece, vai para o veterinário. O mais comum é se machucar. Para Onezil, isso é um milagre, na região. Afirmam, contudo, que a vacinação contra a aftosa é freqüente, conforme determina o calendário do Ministério da Agricultura.
Procedimento idêntico é adotado por Campos que, um pouco mais cuidadoso, faz uma suplementação alimentar com sal mineral e comum. Essa preocupação a mais com a nutrição animal parece ser o único ponto que diferencia o manejo aplicado por Campos daquele praticado por Onezil e Gonçalves. No mais, as práticas de criação, como algumas condições e técnicas se assemelham. Os três são pequenos sitiantes e tiram da propriedade a maior parte do sustento, tendo o boi como principal força, pois o utilizam nas operações de aração, gradeação e semeadura da terra, além de puxar o carro em que transportam a colheita, mourão para cerca, entre outras tarefas. Têm em comum, ainda, o fato de descenderem de famílias tradicionais e gostarem de ser carreiros. Campos garante que, em Jarinú, sou o único que crio esse tipo de animal.
Técnicas diferem pouco
Concordam, também, quando Campos diz que, no período de amansamento, é preciso paciência, não pode bater ou gritar , tem que tratar o boi com carinho, demonstrar afeto, até para ele se acostumar mais rápido com a pessoa. Gonçalves vai mais longe e garante que a gente pega estima do animal e dificilmente vende ou se desfaz dele. Exceto em situações específicas, como mudança para outra região ou para uma casa na cidade. Em suma, o bicho fica sendo quase como uma pessoa da família.
As técnicas para amansar não diferem muito de uma região para outra. No geral, o bezerro é selecionado aos dois anos de idade e a partir daí, é colocado na boléia do carro, ou seja, ao lado de um boi veterano, para ir se acostumando com a operação, conforme afirma campos. Quase ao mesmo tempo, acrescenta, é cortado um ganho de madeira verde, que é posto no pescoço tomando-se o cuidado para que o peso seja adequado ao tamanho do novilho. essa prática é mais adotada para adestramento em currais e evita que mais, tarde, o animal estranhe a canga.
Outra prática, assinala, é fazer com que o boizinho puxe uma tora de madeira com peso variável. Esse exercício fará com que, posteriormente, haja uma adaptação mais fácil ao carro á carga. Gonçalves observa que essa tora pode ter até 1.000 quilos, quando puxada por uma ou mais juntas a junta é formada por dois bois. Esse treinamento, de acordo com Campos, se prolonga por 1,5 a 2 anos, diariamente. Depois desse tempo, o boi está pronto, ou seja, com uma idade de quatro anos, pouco mais, pouco menos.
Gonçalves aceita o cálculo se comenta que esse ensinamento é feito ao som de palavras de ordem proferidas simultaneamente ao toque de uma vara chamada de guiada, buscando a obediência do animal. Essa vara possui uma ponta de ferro, em forma de lança, com alguns anéis pendurados, e é usada para cutucar ou, na linguagem técnica, ferroar o boi. Na verdade, indica Campos, o objetivo é fazer com que o animal tem estocada.
Criador dá nomes aos bois
Depois de amansados, os animais podem ser engatados ao carro, afirma Gonçalves, assinalando que a vida útil ou o tempo de trabalho desses carreiros dura entre 10 e 15 anos. Quatro juntas têm condições de puxar entre 1,5 a 2 mil quilos, que equivalem á capacidade de carga dos carros. Já Onezil observa que o termo sob medida é o mesmo que transportar 40 balaios cheios de milho. Ainda segundo Gonçalves, a velocidade média de um caro de boi não passa de 4 Km/hora.
Campos chama a atenção para o nome dado aos bois, conforme sua colocação no carro. Assim, os animais presos ao cabeçalho (carro), denominam-se bois de coice, os que vão logo em seguida, bois de meio; e os da ponta, bois de guia, atrelados á frente de todos. Quantos ao peso do carro, diz que é bem balanceado e distribuído pela junta, principalmente na subida, apesar de controlado pelo boi de coice.
Com isso, Campos deixa entender que o esforço de tração dos animais não é exagerado. Pois aos quatros ou cinco anos de idade, cada um pesa de 20 a 25 arroba, dependendo do tamanho, uma vez que o boi de pasto demora de 5 a 6 anos para alcançar um bom porte. Já no aspecto de curiosidade, afirma que o gado de tração é selecionado, sempre, entre os machos que, depois, são castrados. Pelo menos em São Paulo e Minas. Muito raramente é usada uma fêmea nessa tarefa. No Sul e em Portugal essa prática é mais comum.
Mas a presença do boi carreiro não se limita a satisfazer as exigências do cotidiano de um sítio ou de uma fazenda. Ele é solicitado a participar, com intensa frequência, de festividades culturais, sobretudo nos aspectos relacionados a manifestações tradicionais e religiosas. Ao natural ou ornamentado, sua aparição entusiasma e empolga a platéia que, embora não chegue ao delírio, fica paralisada, quase que hipnotizada pela, até certo ponto, inusitada visão.
Carreiro uma espécie em extinção
Campos deixa entrever uma pouco de emoção ao dizer que é apaixonado por essa tradição que está no sangue, pois passa de pai para filho. Esse costume herdei do meu avô e estou passando para o meu filho. Para ele, o carro de boi é sempre uma atração. Tanto é verdade, que meu pai, eu e meu filho, participamos como figurantes, de várias novelas, entre elas, As pupilas do senhor reitor, Os ossos do barão, Éramos seis; entre outras. Sempre mexendo com boi ou como cocheiro de velhas diligências.
Com certo orgulho, diz que seu sítio, constantemente, é utilizado como cenário para filmagens televisivas e que sua pequena manada de boi carreiro, com formação básica calcada em quatro bois pretos, quatro pintados e quatro moiros cruzamento de gir com caracu, causa admiração.
Essa paixão também é visível em Onezil e Gonçalves. Regularmente, segundo dizem, organizam passeatas pelas regiões de patos de Minas. Chegamos a ficar 5/6 dias na estrada, pernoitando no mato, acampando na beira de rio, com um grupo de aproximadamente 70 pessoas, inclusive crianças. A comitiva sai da fazenda Mata dos Fernandes com mantimentos, pinga alambicada, paçoca e porcos, que são abatidos durante a viagem. O destino é Presidente Olegário. Ao todo, são doze carros.
Ao chegar ao destino, afirmam encontram-se com mais 30, ás vezes 35 carreiros e participam juntos da Festa de N.S da Abadia. Segundo Onezil, a comemoração é muito antiga, vem do tempo dos nossos avós. É muito bonita. O padre reza missa, organiza romaria, abençoa os carros, enfim, é uma reunião muito alegre. Bem melhor que praia garante.
Para Campos, não deixa de ser gratificante participar dessas manifestações populares, É comovente receber aplausos, elogios e admiração do povo. Inclusive, fomos convidados a participar da Festa de N.S do Campo, padroeira de Jarinú, em janeiro próximo. É bom a gente saber que mantém e mostra uma tradição secular do País, pondera. Toda essa acolhida, no entanto, não impede que a figura do carreira esteja acabando. O boi tem, sempre teve e terá por muito mais tempo, ainda o carreiro.