Os recentes atentados contra Nova York e Washington, nos Estados Unidos, têm sido apontados como forte motivo para um eventual adiamento. Porém, em qualquer que seja a data, a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), será realizada num clima de guerra diplomática entre nações ricas e países periféricos. Eliminar ou manter os subsídios agrícolas, concedidos pelas ‘metrópoles’, serão o tema central e, certamente, o alvo de um pesado fogo da artilharia verbal de ambos os lados.
O encontro previsto para o início de novembro próximo, em Doha, capital do Qatar, pretende discutir os vários instrumentos que regem o comércio internacional e,na área rural, chama uma atenção toda especial a questão relacionada ás subvenções que países desenvolvidos dão a seus agricultores.O principal foco de resistência a mudança mais radicais, devera ser formada pela União Européia e Estados, que “têm uma agricultura extremamente protegida”.
Para analistas, dificilmente os governos norte- americanos e europeus vão abrir flancos e permitir uma brecha mais consistente que possibilite a participação mais significativa dos subdesenvolvidos nos volumes de receita e transações. Os debates deverão ocorrer num ambiente de briga de foice no escuro, profetizam. Ainda que parcialmente, César Roberto Leite da silva e Maria auxiliadora de Carvalho, pesquisadores do IEA- Instituto de Economia Agrícola, de São Paulo, concordam com essas observações.
Eles consideram, por exemplo, que as discussões vão acontecer numa total desigualdade. Isso porque, “alguns países açoados abriram exageradamente seus mercados e não tiveram a contrapartida. Ou seja, Estados Unidos e Europa não abriram e não vão abrir”. Além disso, acrescenta Silva, os países emergentes, sob a teoria neoliberal, desmontaram quase que totalmente o Estado. “O Brasil, entre eles, mostra um Estado totalmente sucateado. Perdeu o poder de articulação. Já europeus e norte- americano mantêm o poder de fogo estatal intacto, condição que lhes permite até impor condições”.
Fragilidade nos obriga a aceitar qualquer acordo
Essa opinião é compartilhada pelo presidente da associação de comércio Exterior do Brasil (AEB), Benedito Moreira, e pelo vice- presidente da CNI – Confederação Nacional da :Indústria, Osvaldo Douat, ao concordarem que “nossa fragilidade pode nos forçar a assinar um acordo que, apesar de nos prejudicarmos, teremos de engolir”. Embora essa afirmação tenha sido feita num seminário sobre a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), na fiesp, no final de setembro último, ela pode ser enquadrada nos termos do encontro da OMC, pois dá a medida exata da visão empresarial sobre a economia brasileira.
Moreira foi adiante e enfatizou que “quem deve demais precisa rolar suas dívidas, corre o risco e ver sua mão forçada a assinar um acordo, mesmo tendo que engolir exigências amargas”. Indo mais além, questiona: “Será mesmo que os Estados Unidos vão abdicar de seus subsídios agrícolas, de sua lei de comércio? E a União Européia, com quem estamos negociando, também vai aceitar pelo menos reduzir seus subsídios à agricultura?”.
O próprio presidente da AEB responde: “Temos de ser realistas. O Brasil não tem participação relevante no comércio mundial e, por isso, não temos força para negociar acordos internacionais”. Acrescenta, ainda que “não temos um programa estratégico para esse tipo de negociação e corremos o risco de repetir os resultados da rodada do Uruguai, do Gatt (Acordo Geral de Comércio e Tarifas), quando abrimos nosso mercado sem a contrapartida do desenvolvimento econômico”.
Numa resposta indireta à infeliz palavra de ordem “exportar ou morrer”, proferida (e depois corrigida para pior) pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, Osvaldo Douat afirma que alguns setores brasileiros, principalmente commodities, agronegócio e têxteis são altamente competitivos e têm espaço para crescer no comércio exterior. “Porém, apesar do impulso da desvalorização do Real (mais de 40% entre janeiro e setembro/01), o Brasil não consegue aumentar suas vendas externas pelas dificuldades internas de expandir a produção e o excedente exportável. Isso tem de ser corrigido”.
Nova roupagem dificulta extinção dos subsídios
Tanto Carvalho quanto Silva, nesse aspecto, acreditam que a valorização do dólar terá efeitos, mas haverá uma, que o mundo vive, no momento, uma desaceleração econômica e essa recessão inibe os parceiros em suas compras. Outro fator bloqueia aumentos expressivos na receita, segundo ele, é a introdução de novas tecnologias. As inovações tecnológicas, acrescenta, buscam uma produtividade maior e, por isso, “preços agrícolas em queda e até uma tendência natural”.
Não obstante, os pesquisadores do IEA afirmam que a grande temática do encontro no Qatar serão mesmo os subsídios que, “apesar da nova roupagem”, segundo Carvalho, continuam e muito dificilmente serão eliminados. Conforme diz, no ano passado, no âmbito da Nafta (que engloba Canadá, Estados Unidos e México) e da OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico), formada por 24 países, a verba gasta com subvenções, inclusive para área agrícola, bateu na astronômica cifra de US$ 470,2 bilhões, ou seja, mais de US$ 1,2 bilhão por dia.
Esses incentivos estão sendo pagos diretamente ao produtor e apresentados como necessários para assegurar a “multifuncionalidade” da propriedade agrícola numa abrangência bem diversificada. Ou seja, a partir de um determinado período, uma fazenda passou a ser responsável ainda que parcialmente, pela preservação do meio ambiente, turismo ecológico, manutenção dos traços tradicionais da cultura local ou regional, da renda, emprego, bem estar social, enfim, além de produção normal e de servir, também, como barreira de contenção ao êxodo rural, entre outros. Esses novos encargos, segundo Carvalho, são cobrados dos países emergentes que nem sempre pode cumpri-los.
Essa espécie de cobrança, sem dúvida nenhuma, será feita na reunião. O Brasil, ainda de acordo com ela, caso seja cobrado, não terá como contra-argumentar. De fato, recentemente, num de seus arroubos contra o Mercosul, o ministro da Fazenda Argentina, Domingo Cavallo, acusou o Brasil de “duping social” por pagar o menor salário mínimo da América Latina. a reação do governo brasileiro foi das mais tímidas, mais indicado para formular esse tipo de denúncia.
País pode ser mais eficiente se alterar a pauta
Silva e Carvalho acreditam que a única forma possível para o Brasil contornar esse estigma e rebater qualquer outra acusação, seria através do crescimento econômico que amenizaria a concorrência e até ajudaria solucionar eventuais problemas de ordem social, ecológica e outros que possam surgir. Carvalho, porém, observa que isso será difícil, pois, “o Brasil sequer tem uma política agrícola. Mesmo assim, a agricultura é eficiente, pois sem qualquer apoio governamental e enfrentando concorrentes subsidiados, consegue ser superavitária”.
Recorrendo a dados estatísticos divulgados pela FAO – Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, os pesquisadores do IEA afirmam que, em 1999, a participação do Brasil no comércio mundial apenas de produtos agrícolas, foi de 3,3%. Para um faturamento total de US$417,3 bilhões, as vendas brasileiras tiveram uma receita de US$ 13,8 bilhões, contra um gasto de US$ 4,1 bilhões com importações.
Esse grau de eficiência, de acordo com Silva, pode ser ampliado, desde que o Brasil altere sua pauta de exportação e ofereça produtos procurados. Isso porque, acrescentam, houve uma mudança na demanda mundial por alimentos e o País ainda insiste em manter os atuais como principais. Essa alteração teve início nos anos 70 e vem se acentuando cada vez mais, devido a existência de pesquisas associando determinadas propriedades dos alimentos ao surgimento de doenças cardíacas, câncer, obesidade, entre outras.
Diante disso, os danos causados por gorduras saturadas provocou uma retração na procura por carne vermelha, ovos, leite integral e a um aumento na busca por carboidratos e fibras, com a escolha recaindo sobre frutas, legumes e hortaliças, até pouco tempo considerados complementares na alimentação, em relação aos produtos pecuários. “Num espaço de 20 anos, entre 1970 e 1990, o consumo de carne vermelha, per capita, caiu 15% e, paralelamente, houve um crescimento de 90% na ingestão de carne de aves”.
Renda baixa mudança de hábitos
Mas as transformações dos hábitos alimentares não se restringem apenas a cuidados com as propriedades dos produtos e seus reflexos na saúde. Essa cautela se estende à existência de resíduos de agrotóxicos, condições de conservação, alterações genéticas e efeitos da exploração intensiva dos recursos naturais sobre o meio ambiente e prováveis impactos sobre a vida na terra. Essa preocupação predomina entre pessoas de poder aquisitivo elevado, em qualquer parte do planeta.
Contudo, grande parte da população mundial ainda se encontra na etapa do consumo de raízes ou grãos, em função do baixo poder aquisitivo. Porém, à medida que a renda aumenta e atinge um estágio avançado, ocorre uma procura maior por gêneros de origem animal, que adicionam benefícios em termos de nutrição sem, pelo menos até agora, provocar problemas de saúde.
Tanto é, segundo eles, que há estudos mostrando que, até 2020, a demanda por cereais deverá crescer até 39%, por raízes e tubérculos 37%, e 58% pela carne. Essas estatísticas têm como base expectativas de crescimento populacional, maior urbanização, aumento da renda, mudanças no estilo de vida e hábitos alimentares da população mundial. Segundo eles, a maior parte da expansão na procura por alimentos de origem animal acontece em países subdesenvolvidos que, entre 1970 e 1990, ampliaram 50% o consumo de carne, ovo e leite.
Carvalho e silva são taxativos e permitem inferir que essa reversão na demanda alimentar, com a preferência recaindo sobre vegetais e fibras, está na origem dp protecionismo e exacerbado. Categóricos dizem que “a agricultura tem sido protegida nos países desenvolvidos, mas o grau de proteção para os grãos tem sido maior que para outros alimentos”. Enfatizam, ainda, as chances de um retorno a uma situação que pode ser considerada como normal ou natural são muito reduzidas”.
Brasil precisa analisar tendência de consumo
Para eles, essa constatação é importante para que se possa definir uma estratégia mais agressiva de inserção no mercado internacional. “Na impossibilidade de enfrentar a concorrência dos subsídios do setor granífero, a melhor alternativa é buscar áreas onde os negócios sejam mais livres, que possibilitem contornar essa dificuldade”, aconselham. Advertem, ainda, que, como a demanda “está em primeiro lugar dentre os determinantes do comércio, se o Brasil pretende ampliar sua competitividade, precisa traçar uma estratégia de acordo com os interesses dos consumidores”.
Esse plano de ação, alertam, é imprescindível, pois “cerca de 70% do valor das exportações agrícolas brasileiras referem-se a produtos em que a demanda mundial está em declínio e caracterizam situações de vulnerabilidade e retrocesso”. Como “vulneráveis”, apontam a soja em grão, açúcar cristal bruto, fumo em folha e carne suína. Em “retrocesso” indicam torta de óleo de soja, café em grão, açúcar refinado, carne bovina em conserva, polpa de fruta para animais, entre outros. Como “oportunidades perdidas” citam os alimentos em conserva e mate. Não esquecendo ainda, no incremento da procura por produtos para consumo (congelados, entre outros).
Em contrapartida, alimentos cuja demanda registra expansão ou mostram essa tendência, como é o caso de frutas, legumes e peixes, que “sequer aparecem entre os produtos de maior participação nas vendas externas do País”. Carvalho e Silva ressaltam que o Brasil tem, na agricultura, “uma importante uma avaliação séria e profunda dessas preferências, visando um melhor aproveitamento das vantagens comparativas naturais”. Segundo eles, uma análise sobre os diversos itens abrangidos pelo comércio agrícola internacional mostra que “mais de 2/3 dos produtos transacionados no mundo não constam da pauta de exportação do Brasil”.
A possibilidade de o País atingir e até superar 10 milhões de toneladas de grãos na próxima safra, é alvissareira e mostra que os agricultores estão explorando, com êxito, o potencial do setor. Porém, os dois carros-chefe dessa produção limitando-se à soja e ao milho, que mostram expansão notável nos últimos anos. O sucesso dessas duas lavouras é atribuído às condições favoráveis de preço, mercado (interno e externo) e consumo, embora, prioritariamente, sejam destinados à composição da ração animal. Paralelamente, as lavouras de cereais alimentícios (arroz, feijão, trigo mandioca, entre outros), mostram-se estagnadas ou apresentam ligeiros avanços.
Opção embute riscos
Carvalho considera que a posição de liderança alcançada por aquelas culturas está vinculada à “opção de auto-capacidade alimentar” adotada pelo Brasil. Essa escolha, dentro do conceito de segurança alimentar da FAO, significa garantir a oferta de alimentos à população, não só com produção própria, mas, também, com importação, caso haja necessidade. Tanto Carvalho quanto Silva, consideram que esse modelo “representa riscos para as famílias mais pobres, que despendem maior proporção de sua renda com alimentação”.
A outra opção, segundo eles, seria “auto-suficiência”, escolhida pelos países europeus, cuja prioridade é satisfazer as necessidades alimentares calcadas, principalmente, na produção doméstica, com dependências mínimas de importações. Esse esquema é preferido pela maioria dos países desenvolvidos que, para isso, articularam vários instrumentos de proteção à agricultura. Com o tempo e a continuidade, esse protecionismo atingiu níveis elevados que permitiu ultrapassar os próprios limites e tornar essas nações exportadoras líquidas de alimentos.
Já os subdesenvolvidos, ao contrário oneram o setor agrícola. Apesar disso, são capazes de sustentar relativa auto-suficiência alimentar e gerar excedentes exportáveis, devido ás vantagens comparativas naturais da produção. Entretanto, essa superioridade, freqüentemente, é neutralizada pelas barreiras protecionistas impostas pelos países ricos.
O Brasil, não é exceção. Segundo Carvalho e silva, o governo, progressivamente, tem abandonado o enfoque da auto-suficiência e recorrendo às importações, “cada vez mais”, para atender a demanda interna de alimentos. Até agora, acrescentam, essa opção não acarretou maiores problemas na oferta de comida ao conjunto do País, “até porque o subsídio dos ricos favorece as relações de troca e ajuda a diminuir os preços ao consumidor”. Porém, individualizando o problema, a concorrência com produtos subsidiados desestimula a produção doméstica e contribui para reduzir o acesso aos alimentos para aqueles que têm nessa atividade sua principal fonte de renda.
Diante desse cenário, assimilam, não é difícil concluir que, enquanto os países ricos, apesar de terem proposto, negam os princípios liberais e resguardam o setor agrícola da competição, os subdesenvolvidos se mostram incapazes de exercer qualquer proteção mais efetiva a seus agricultores. Isso porque, com os estímulos à industrialização, conduzindo, por muito tempo, políticas de desenvolvimento “com forte viés urbano”, extraiam recursos da agricultura.
A conjugação desses fatores, assinalam “na perda de espaço nas trocas internacionais dos produtos que, tradicionalmente, garantem vantagem comparativa às economias com menor disponibilidade relativa de capital”. Dessa forma, os ditos emergentes, de uma participação de “40,7% nas exportações agrícolas mundiais, em 1961, caíram para 29%, em 1993. Em contraposição, as importações cresceram de 19,9% para 28,9%, no mesmo período. Essa, aliás, é a grande transformação das tendências do comércio internacional contemporâneo: os ricos passaram a exportar mais produtos agrícolas e os pobres aumentaram suas importações”, arremataram.
Especificamente sobre o Brasil, Carvalho e Silva observavam que, com a abertura econômica, reforçada pela sobrevalorização cambial, o governo praticamente suprimiu os tradicionais instrumentos de apoio ao setor. O resultado: entre 1990 e 1998, as exportações agrícolas evoluíram à taxa de 8% ao ano, enquanto as importações cresceram 18%. Para eles, essa opção “é questionável, até porque o protecionismo está arraigado nas economias desenvolvidas e não foi abandonado, mesmo no auge do liberalismo. Deixar que as forças do mercado prevaleçam quando os maiores competidores contam com instrumentos poderosos de intervenção implica sérios riscos, em particular para a segurança alimentar da nação”.
São enfáticos ao afirmar, finalizando, que têm “dúvidas do acerto da estratégia brasileira, que pode comprometer ainda mais o acesso aos alimentos às famílias mais pobres, terceira condição para a verdadeira segurança alimentar. O fato do País não enfrentar problemas de abastecimento não significa que vive uma situação de segurança alimentar. Grande parte da população é incapaz de expressar suas necessidades alimentares básicas, na forma de demandas de mercado. Essa falha é grave e é obrigação do Estado intervir para que todos tenham acesso à comida”.