A inexistência de uma política agrícola consistente, não só compromete uma alavancagem mais eficiente dos agronegócios, como também bloqueia um impulso maior nas atividades das várias cadeias produtivas que atuam no País. Essa ausência dificulta o planejamento da produção rural, inibindo a continuidade cíclica do processo. Agravando a situação, um sistema mambembe de crédito impede uma definição sobre o tamanho da safra, gerando, como conseqüência, uma oferta irregular de produtos, seja para o mercado externo ou interno. Isso, sem falar que o modelo vigente, desde longa data, possibilita o crescimento da concentração da propriedade da terra.
O problema brasileiro não está associado à capacidade de produzir, mas a dificuldade em financiar de forma adequada a realização de cada plantio. Isso corresponde a conceder crédito em três instâncias básicas: investimento, custeio e comercialização. Esses três segmentos têm o papel estratégico de garantir que a agricultura tenha planejamento, produção e fluxo de renda contínuos. Essa, pelo menos, é a constatação de um estudo da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), elaborado por seu coordenador e assistente, José Sidnei Gonçalves e Sueli Alves Moreira Souza, além do diretor substituto do IEA – Instituto de Economia Agrícola, Nelson Batista Martin.
No agronegócios, entendido como um rol de cadeias produtivas, o crédito é fundamental tanto para assegurar o movimento, como para impulsionar a potência da máquina de produção. Em particular, o financiamento do custeio para lavouras e criações, acrescentam, deve ser visto como o capital de giro diferenciado para uma atividade sazonal e, como tal, um instrumento decisivo para definir o volume a ser obtido nas colheitas. Traçando um paralelo com a indústria, afirmam que, quando um empresário decide investir numa planta e esta se mostra inviável, haverá consideráveis perdas com a desistência.
Total do crédito é consumido em apenas uma safra
Na agricultora o problema é o mesmo. Na lavoura anual, que consome, no Brasil, “a quase totalidade do crédito, em apenas uma safra, a das águas, a decisão de plantio assume, no curto prazo, essa característica de irreversibilidade, porém sem grandes perdas”, em comparação ao setor industrial. Esse prejuízo, ressalvam, será um choque mais ameno desde que o custeio “seja lastreado, como ocorre em países com agropecuária desenvolvida, como os dos Estados Unidos, em mecanismos de seguro rural subsidiado”. É preciso deixar claro, advertem, que esse tipo de empréstimo não produz mudanças estruturais ou na dinâmica econômica, sendo, por isso, “financiar o investimento uma exigência inexorável para o desenvolvimento do agronegócios, fugindo da proposta curtoprazista de discussão apenas dos planos de safras anuais – cujos recursos devem ser progressivamente advindos da venda antecipada da produção”. O mesmo pode ser dito sobre o financiamento à comercialização, cujo principal papel é assegurar mecanismos que minimizem os impactos da sazonalidade sobre o setor.
Para eles, o sistema creditíco é importante para agricultura e, ainda, consiste num dos alicerces “sobre o qual se ergue o edifício da cadeia agrícola competitiva. Corroer essa base é implodir um prédio que representa 41,2% da paulista, medidas pelo PIB – Produto Interno Bruto.“Dessa forma, acrescentam, “é preciso transformar vantagens comparativas em competitivas, otimizando elos produtivos do agribusness.
Financiamento em crise desmonta política agrícola
Gonçalves, Sueli e Martin afirmam que a atual base do agronegócios brasileiro decorre da estrutura de empréstimos gerada na metade dos anos 60, com o crédito subsidiado para modernização das lavouras e criações, contemplando, ainda a expansão da agroindústria processadora. Esse modelo foi aprofundado nos anos 70 com o financiamento à internalização dos bens de capital (máquinas, fertilizantes e agrotóxicos), com base no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Nesse período ocorreu o boom das transformações, cuja fonte de recursos (dívida interna pela conta movimento do BC), entrou em decadência no final da década de 70 e persistiu nos anos seguintes.
“A crise no padrão de financiamento representa o ponto central do desmonte da denominada política agrícola brasileira, forjada nas décadas de 60 e 70”. A partir dessa época, já adentrando aos anos 80, “com idas e vindas, não houve solução definitiva para a causa do problema do crédito, qual seja, criar um novo sistema que dê suporte o desenvolvimento do agronegócios, compatível com seu desempenho de seu papel histórico de mais importante setor da economia nacional”, avaliam.
Na maioria das vezes, as tentativas resultaram num reforço ao círculo vicioso que , quase sempre, “buscava reanimar um modelo que não apresenta a mínima condição de manter-se em pé, quanto mais carregar nos ombros um novo ciclo virtuoso de inversões produtivas adequado à potencialidade setorial”. Daí a necessidade, alertam, de retomar as discussões e elaborar as premissas que garantam a produção no imediato, “sem perder de vista a exigência de construir um novo desenho para a carteira agrícola”.
Debates não levam em conta dificuldades de acesso ao crédito
O debate sobre a montagem de políticas públicas de dessem sustentação à agricultura como um todo e, em particular, ao desenvolvimento da agricultura familiar, remonta a décadas. Em grande parte, essa discussão era centrada numa guerra de números que, no final, empacava na disponibilidade de dinheiro. Poucas vezes houve enfoque sobre o acesso a esses recursos que, mesmo disponíveis, não contemplam essa categoria. As exigências bancárias eram (e são) o grande obstáculo a ser transposto, levando muitos a creditarem que a alternativa era inviável. O resultado dessas dificuldades “é uma tremenda e inaceitável” concentração da propriedade da terra “associada a uma ampliação da pobreza rural”, contatam.
Sob essa ótica, enfrentando o desafio de romper com uma tradição de desenvolvimento centrado na grande empresa, o governo paulista procura “revolucionar” os métodos que embasam a elaboração de políticas públicas, tendo como foco proprietário, a crença na possibilidade do crescimento da produção familiar. Porém, , essa prioridade não será limitada apenas pelo discurso sobre liberação de recursos para esse segmento. “Mais do que isso, serão criados instrumentos que garantam acesso a esse crédito, assegurando o resgate da cidadania a esses pequenos produtores, dando-lhes a certeza de que serão financiados na evolução de seus negócios”.
Para que isso ocorra, Gonçalves, Sueli e Martin, contam que FEAP (Fundo de Expressão da Agropecuária e Pesca), foi transformado em Fundo Expansão do Agronegócios Paulista, que pretende ser um mecanismo ágil e efetivo de intervenção. O objetivo acrescenta é “fazer com que, ao contrário de anteriormente, quando era um mero distribuidor de verbas, sejam multiplicador de recursos escassos através da aplicação do dinheiro público na equalização das taxas de juros”. Com essa medida, haverá uma ampliação no número de beneficiários. Ou seja, os 10 milhões disponibilizados para empréstimos, a uma média de R$ 10 mil por contrato, atinge mil produtores. Equalizados os juros para uma taxa de mercado de 8% ao ano, a produção familiar pode ser financiada a 4% ao ano, como o FEAP bancando o restante e o mesmo total (R$ 10 milhões) vai atender 25 mil agricultores, explicam.
Fundo de aval pode eliminar o gargalo
Outra alteração, relaciona-se com a atuação do FEAP como um fundo de aval, desde março do ano passado. Segundo eles, a intenção é eliminar o gargalo do acesso ao financiamento, pois as condições normais “excluem a grande maioria dos pequenos e médios agricultores, que tem dificuldades de cumprir as exigências e de fornecerem garantias aos empréstimos”. Esse mecanismo, além de facilitar a obtenção de dinheiro, ainda permite um atendimento mais abrangente. Isso porque, de uma dotação orçamentária “escritural” do FEAP, de R$ 75 milhões, é possível alavancar R$ 600 milhões no crédito rural e atender a 60 mil produtores, com valor de R$ 10 mil por contrato.
O passo seguinte, acrescentam, será mudar a denominação Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista para o Banco do agronegócio Familiar, descentralizando as ações, conforme modelos vitoriosos de micro crédito, a exemplo do Banco do Povo. Num primeiro momento, essa atuação será estendida pelas 40 regionais da Secretaria de Agricultura. As unidades implantadas serão dirigidas por agentes especializados que agirão com base em comitês de crédito com a participação da sociedade civil, que não só fiscalizará, mas, também, dará rapidez de definirá as propriedades dos projetos a serem financiados.
Outra medida importante, está relacionada ao seguro do agronegócio. A esse respeito já foi encaminhado um projeto de lei para Assembléia Legislativa de são Paulo e a expectativa é de que, ainda este ano ou no mais tardar 2002, ele seja aprovado. Eles garantem que o instrumento vai permitir estabilidade da renda do agricultor e reduzir os riscos de inadimplência no financiamento. Lembram, ainda, que a agricultura está submetida à leis biológicas da sazonalidade, apesar do domínio de técnicas que ampliam os períodos das safras com variedades precoces e tardias, além da irrigação e outras tecnologias. Mesmo assim, a decisão de plantio ocorre num tempo muito restrito e, uma vez adotada, não pode ser revestida sem perdas expressivas. é uma aposta contra o clima, pragas, doenças, entre outros fenômenos que vão afetar a produtividade, além da perspectiva de preços futuros e isso exige cacife, observam. Por isso, os recursos são adiantados em meses para compra de insumos, operações de máquinas e contratação de mão de obra, com perspectiva de serem ressarcidos com lucros na colheita.
Seguro, uma forma de garantir renda
Porém, essa iniciativa não é isolada. Ela afeta toda uma região, com vários produtores trabalhando uma mesma lavoura, concorrendo entre si. Paralelamente, a produção é colhida simultaneamente, provocando uma sobre oferta “frente a oligopsônios que, no ato da compra, dispõem de poder de mercado superior aos dos vendedores dispersos. Diante disso, o seguro rural representa um mecanismo de política pública nas principais nações líderes no setor agrícola. O principal objetivo, nas diversas formatações, é garantir renda líquida rural num patamar aceitável a um padrão de vida do lavrador ou criador, estimulando-os a manterem as atividades no campo. Nos Estados Unidos, o seguro rural “recebe um subsídio explícito de 60% do prêmio do lado dos custos dessa operação”, afirmam. Acrescentam que, “associado a medida de garantia de renda, pode atingir níveis de até 90%”, desde que sejam seguidas regras rígidas de regionalização e controle de oferta, como o “set a side”.
No Brasil, as experiências de seguro rural estão longe de serem denominadas como tal. O Proagro garantia mais o financiamento ou o banco, do que o agropecuarista contra riscos da atividade. “Mais grave que isto, é o fato de que o sistema entrou em colapso, deixando de honrar compromissos, além de permitir o surgimento de uma indústria de laudos nem sempre consistentes, aprofundando as distorções”. Com isso, a proposta básica é no sentido de criar um fundo nacional, com recursos do Tesouro, para subsidiar o prêmio do seguro. Argumentam, ainda, que o crédito genérico seria tomado a mercado e pelo estímulo à venda antecipada para custear a produção, “seria eliminado o empréstimo de custeio ou reduzido à mera fixação de exigibilidade, sem influir nas taxas de juros”. Segundo Nelson Martin, o Tesouro paulista aceitou discutir essa matéria. “Já a nível de federal, é preciso enviar uma emenda para LDO – Lei das Diretrizes Orçamentarárias, para aprovação no Congresso”.
Sob esse aspecto, assinalam que as taxas oficiais e os recursos mobilizados para o financiamento agrícola seriam usados apenas para investimento, “definindo regiões e cadeias de produção numa política vertical consistente”. Isso também se aplicaria na agricultura familiar, à qual poderia ser aplicada a equalização dos juros tendo como suporte fundos públicos estaduais. “Todo acesso a benefícios públicos seria submetido ao rigor da definição do zoneamento agroclimático, privilegiando zonas mais aptas”, sugerem. No mais, acrescentam, o subsídio ao prêmio do seguro, concebido como seguro básico de intervenção estatal, dando sustentação a um amplo processo de financeirização da produção.
Pecuária deve ceder área para ampliar lavouras
Caso essa medida seja posta em prática, os técnicos da Apta estimam que, a cada ano, será necessário levantar “R$ 5,4 bilhões, dos quais R$ 3,1 bilhões para o custeio anual das atividades agrícolas e pecuárias; R$ 1,4 bilhões para os mais diversos investimentos; e R$ 800 bilhões para a primeira etapa da comercialização de gêneros vegetais e animais produzidos”, tomando como base a agropecuária paulista. Utilizando como parâmetro a distribuição de crédito rural de 1999, cerca de R$ 1,9 bilhão seriam alocados pelo sistema tradicional e R$ 3,4 bilhões por outras fontes, como recursos próprios, empréstimos da indústria, exportadores, atacadistas e crédito informal. São valores expressivos, “porém conservadores”, numa perspectiva de dinamização do agronegócios estadual, pois mantêm a base produtiva e os patamares das projeções de oferta, ponderam.
Para imprimir um ritmo mais dinâmico à agropecuária paulista, apontam como essencial que a produção pecuária ceda “pelo menos 4 milhões dos 10,5 milhões de hectares que ocupa e adote medidas que ampliem a produtividade do setor. Isso vai permitir que as áreas de lavouras se expanda para aproximadamente 10 milhões de hectares, contra os 7,5 milhões/ha atuais”. Para isso, estimam que será necessário um adicional de R$ 6 bilhões, configurando uma exigência total de R$ 11,4 bilhões “que poderiam duplicar a renda bruta da agropecuária de São Paulo (R$ 12,8 bilhões, em 1999), sem levar em conta os multiplicadores no PIB do agronegócios e nas oportunidades de trabalho”. Afirmam, ainda, que a opção para mobilizar esse volume de recursos está na venda antecipada da safra e na financeirização da produção, “ampliando, vertiginosamente, a venda de papéis lastreados no produto rural em bolsa”.
Num cálculo estimativo e tendo como pressuposto a universalização do seguro e o zoneamento agropecuário, levando em conta, ainda, a exigência dos R$ 11,4 bilhões, Gonçalves, Sueli e Martin acreditam que, para um prêmio médio em torno de 5% o valor tomado, “o subsídio da metade desse custo consumiria R$ 285 milhões/ano”. Acrescentam, ainda, que num fundo como Feap, a alocação de R$ 50 mil anuais teria condições de segurar operações de R$ 2 bilhões, com o que, selecionando cadeias de produção, “os resultados seriam esplêndidos”.
No Brasil, mantidos os coeficientes, “com R$ 1,5 bilhão/ano seria possível subsidiar o seguro de quase o dobro da produção agropecuária, proporcionalmente muito mais baratos que os gastos da União Européia. Porém, é preciso selecionar as cadeias produtivas, o público-alvo e as regiões com imensos efeitos multiplicadores, inclusive no mercado financeiro solidificado pela inserção plena do principal setor econômico brasileiro”.
Despesas com inadimplentes são maiores
Para eles, ainda que as cifras sejam astronômicas, os valores são significativamente mais baixos que os gastos com outras formas de subsídios, nem sempre explícitos, pois promovem uma revolução na estrutura produtiva do agribusiness com efeito positivo na dinâmica na economia estadual e nacional, com resultados favoráveis na área social, multiplicadores de riquezas e chances de trabalho. Além disso, interioriza o desenvolvimento “e são muito mais baratos que os recursos públicos dispendidos com os inadimplentes com crédito rural e na equalização anual das taxas de juros para o financiamento para o custeio das safras”.
Para assegurar algum êxito nas alterações do sistema de financiamento da agricultura, os técnicos da Apta defendem a existência de um Estado, “no mínimo regulador, com força e capacidade para conduzir o rumo do desenvolvimento no sentido de ampliação das oportunidades associadas à redução das disparidades, monitorando o novo modelo e catalisando a massa de recursos necessária para o investimento nas mudanças”. Sob essa orientação, preconizam algumas funções “indispensáveis” para que esse gerenciamento ocorra a contento.
Dessa forma, afirmam como “papel indelegável” do Estado, a necessidade de dar confiabilidade aos processos de transações comerciais e financeiras, definindo a fiscalização do cumprimento de padrões normativos de qualidade certificada, estruturada em mecanismos transparentes da rastreabilidade adequada, garantindo uma inserção competitiva num mundo globalizado, condição essencial para universalidade das trocas num mercado nacional integrado.
Da mesma forma, no comércio eletrônico, é vital que o Estado fixe os parâmetros de operação, com vistas à redução dos custos, não só com relação ao fornecimento de insumos para o setor rural mas, também, administre produtos e processos em todas as cadeias produtivas, da roça à mesa (farm to table).
Estado forte deve evitar privilégios nas informações
Outro cuidado que o Estado deve ter está relacionado com as informações, que precisam ser democratizadas, sedimentadas em tecnologia de ponta, com acesso em tempo real, de qualquer parte do território, contendo técnicas produtivas, oferta e demanda de produtos e serviços, cotações nos diversos níveis de mercado e, sobretudo, evitar o acesso privilegiado na obtenção de dados estratégicos, por vazamento indevido ou pelo monopólio privado da base estatísticas que permitam manipulações para o favorecimento de pessoas, empresas ou segmentos.
No terceiro e último papel “intransferível” do Estado, está a função de estruturar e equalizar os acessos ao financiamento. Nessa área, é imprescindível que assuma o processo de desenvolvimento, “sem que seja seu custeador”, quer dizer deve adotar determinações que indiquem uma postura nítida dd seleção de públicos e centrar-se nos investimentos, priorizando a competitividade e a sustentabilidade econômica e social. Dessa forma, os recursos públicos serão aplicados buscando os seguintes resultados: estabilidade da renda através do seguro rural; sustentação de agricultura familiar; e crédito de investimentos para mudanças estruturais desejadas e com projetos específicos. Para eles, esses, entre outros, são pontos essenciais para a modelagem do novo padrão de financiamento do agronegócios, que devem gerar instrumentos sustentáveis de investimentos e capital de giro para ocupar a capacidade produtiva instalada. “Em economias continentais, como a brasileira, pela sua expressão econômica e social, a carteira de empréstimos ao agronegócios é um crédito no futuro”, concluem.