Sustentabilidade

Taxar a água, um suporte à preservação

Porém, com o passar dos séculos, essa condição de elemento sagrado foi profanada e nos dias atuais, apesar dos controles, mostra um alto grau de contaminação, em especial em algumas regiões, além de correr o risco de desaparecer da face da terra. Para reverter essa tendência, o mundo discute a adoção de medidas preventivas e, no Brasil, os Estados, São Paulo inclusive, debatem a criação de uma taxa de uso para arrecadar recursos destinados á proteção e recuperação de mananciais.

Com uma distribuição bastante heterogênea, a água ocupa 72% da superfície terrestre. Os oceanos são formados por 97,2% do volume total existente. Dos 2,8% restantes, 215% estão concentrados nas geleiras e 0,63% está localizado nos aquíferos subterrâneos. Apenas 0,02% está lagoas e rios. A constatação geral é de que, para cada 10 mil litros, apenas dois estão disponíveis superficialmente. Essa disponibilidade, entretanto, não é uniforme, a exemplo das precipitações pluviométricas (chuvas), fato que a transforma num elemento cada vez mais escasso. Diante disso, cientistas alertam que, ao contrário de outros recursos naturais classificados como renováveis, a água é finita.

Para agravar o quadro, principalmente nos centros urbanos, o produto é utilizado de forma quase predatória fazendo com que, além da ameaça de exaustão, a qualidade fique cada vez mais comprometida pela poluição de origem doméstica e industrial. Tem sido inevitável a existência de conflitos na disputa pelo uso do líquido. Há registro de usuários envolvidos em contendas de vizinhança, queixas juntos ás autoridades policiais, lutas judiciais, inclusive confrontos armados. Nesse aspecto, uma recente reunião, em Nova York, do NIC, sigla em inglês do Conselho Nacional de Inteligência, uma comitê da CIA (Agência Central de Inteligência, serviço especialistas dos Estados Unidos), convocou especialistas de diversas áreas para elaborar uma previsão sobre o futuro do mundo.

No documento final, entre várias projeções, o alerta geral foi contra a bomba demográfica, considerada como maior perigo para o mundo. Cidades com 10 milhões de habitantes, verão sua população duplicar até 2015. Os especialistas também previram que o grande drama mundial, será a guerra pela água, envolvendo 3 bilhões de pessoas. Advertem, ainda, que a carência de recursos hídricos desencadeará todo tipo de tensões e conflitos. Bom, caso isso não aconteça espontaneamente, a CIA, pelo que é por sua história, pode até criar situações que permitam essa ocorrência. Essa perspectiva fica mais palpável com a existência de 250 milhões de pessoas, em 56 países, sofrendo com a escassez crônica de água, segundo Cláudio Antonio de Mauro, prefeito do Rio Claro (SP).

Apesar de o Brasil possuir uma das maiores reservas do mundo, pois, dos 0,02% disponíveis, abriga em seu território, ainda que mal distribuídos, 12% do total de água potável existente no globo, o País, seguramente, não estará imune a essa previsão. Por isso, como prevenção ao surgimento de eventuais situações explosivas, está em discussão a implantação de instrumentos de gestão, buscando assegurar, não só a oferta de água mas, também, a integridade do ecossistema. A Constituição Federal de 88 tem um capítulo inteiro garantindo um ambiente preservado no presente visando beneficiar futuras gerações.

A Constituição paulista também dedicou atenção ao meio ambiente e, segundo o secretário de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras, Antonio Carlos de Mendes Thame, São Paulo inovou ao estabelecer uma seção específica para recursos hídricos, sendo o Estado que mais avançou nesta área. Ao falar sobre o instrumental de gestão a ser implantado, diz que a tomada de consciência permite e impõe um novo enfoque econômico, jurídico, político e administrativo, privilegiado o planejamento em termos mais amplos. Com isso, acrescenta, fica consolidado o consenso de que é necessário um gerenciamento multinacional, nos rios e lagos existentes em áreas de fronteiras, nacional e regional sobre a água e os ecossistemas que reciclam e garantem a qualidade e a quantidade dos estoques do planeta.

Ainda conforme o secretário, atualmente, em todo o País, se discute a cobrança pelo uso da água. Esse debate é decorrência de uma preocupação derivada da conveniência de aprovar uma lei estadual, já que a União tem legislação federal que prevê a criação da ANA – Agência Nacional das Águas. Essa entidade desenvolvimento do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, definindo a cobrança em reservas da União. Nesse caso, os recursos auferidos iriam para o caixa nacional. Ao mesmo tempo, a ANA deve iniciar suas atividades em regiões críticas, sejam em termos de poluição ou de escassez e, especialmente, naquelas onde haja situação de conflito.

Mendes Thame aponta restrições na lei federal, que não prevê a criação de um organismo, como existente em São Paulo: Fundo Estadual de Recursos Hídricos – Fehidro, para onde irá o dinheiro arrecadado com a taxação, no Estado. Outra falha apontada por ele, é o fato desse aparato legal não prever a obrigatoriedade dos recursos serem aplicados na região onde foram recolhidos. Ora, a necessidade de saneamento dos outros Estados é maior que a de São Paulo. Por isso, é razoável pressupor que o dinheiro que sair daqui, dificilmente retornará. Os Estados podem implantar a cobrança de utilização da água por decreto, pois está previsto na Constituição e o Ceará já fez isto, acrescenta.

O assunto, em São Paulo, foi regulamentado pela lei 7663/91, que cria o Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Essa legislação, indica, é pioneira no País e permite montar a gestão participativa, através da instalação de comitês de bacias hidrográficas que representam uma revolução conceitual na forma de administrar as águas paulistas. Uma das inovações é a composição tripartite dos colegiados deliberativos desses comitês, formados por representantes do Estados, municípios e sociedade civil (1/3 cada). Denominado de parlamento das águas, os comitês são mais que um fórum de discussão, pois formam um conselho com poder de decisão em relação a tudo que refira a recursos hídricos, determinado onde alocar recursos financeiros e quais obras devem ser priorizadas.

Em São Paulo existem 20 comitês em funcionamento e já aplicaram mais de R$ 80 milhões em obras de saneamento, tais como estações de tratamento e de abastecimentos, ações ambientais como reflorestamento de matas ciliares, projetos de educação ambiental e obras diretamente ligadas á qualidade e obras diretamente ligadas á qualidade de vida da população, diz o secretário. O quadro de oferta no território paulista mostra uma boa média. A disponibilidade de água, por habitante/ano é de 2.900 m³, quase o dobro do índice mínimo, que é 1.500m³/ano, abaixo desse volume acontece o chamado estresse hídrico. Mesmo assim, assinala que existem quatro regiões em situação crítica: Alto Tietê, Piracicaba, Turvo Grande e Mogi, com uma disponibilidade média de 750 m³ por habitante/ano.

O governador Mário Covas, em dezembro passado, enviou á Assembléia Legislativa paulista, o projeto de lei 676/ 2000, regulando o tema e contemplando as situações de desigualdade, inclusive pedindo regime de urgência, para que a cobrança seja efetuada já a partir de 2001. Pelo documento, o Conselho Estadual de Recursos Hídricos terá a competência de decidir sobre o preço a ser cobrado, fixando um limite. Cada comitê de bacia, a partir do valor fixado, pode definir a quantia a ser cobrada de um dos setores usuários, conforme as atividades ou usos. Um outro dispositivo, determina que os recursos permaneçam na bacia onde foram recolhidos, devendo ser aplicados integralmente. O projeto também aborda e releva especificidades da agricultura. Segundo o secretário, durante 4 anos nada será cobrado dos agricultores. Esse prazo é necessário para o cadastramento completo dos irrigantes e demais usuários rurais.

Nesse contexto, continua, aumenta, também a aceitação da água como um bem econômico razão pela qual seu valor deve refletir todos os custos necessários para sua provisão. Exceto os casos de atendimento aos muitos pobres, as tarifas e a cobrança pelo uso de líquido devem ser encaradas como instrumentos de gestão. Nesse aspecto, ressalta, existe, desde 1934, o código das Águas prevendo esse instrumental com os princípios do poluidor-pagador e do usuário-pegador, que instituem a obrigatoriedade de pagamento, tanto para quem estiver retirando uma determinada quantidade de água dos mananciais superficiais ou subterrâneos, quanto para quem despejar efluentes nos rios. Porém, nunca foi aplicado porque a idéia geral é de que, no Brasil, não falta água. De fato ela existe, mas é muito mal distribuída.

Mendes Thame mostra que cálculos preliminares fixam o valor a ser cobrado em R$ 0,01 por metro cúbico. Uma pessoa consome entre 150 a 200 litros por dia; quatro pessoas, de 600 a 800 litros/dia Em 30 dias, 18 a 24 m³, perfazendo um custo, no final do período, entre R$ 0,18 a R$ 0,24, valores praticamente insignificantes. De qualquer forma, assinala, não é possível desprezar o volume de recursos que poderão vir a ser arrecadados e obrigatoriamente aplicados em recursos hídricos. As estimativas iniciais permitem supor que serão recolhidos, apenas em São Paulo, R$ 55 milhões por ano, obtidos com a cobrança pela captação e consumo e outros R$ pela captação e consumo e outros R$ 300 milhões advindos de taxas aplicadas sobre quem polui as águas.

Além disso, enfatiza, cada comitê poderá priorizar a cobrança de quem polui e cobrar muito menos dos que simplesmente captam a água. Ou cobrar apenas dos que poluem e isto é muito importante: sobretaxar o poluidor e sub-taxar o usuários que só consome. A cobrança pelo uso da água não é exclusivamente brasileira. O Banco Mundial aponta essa experiência em 22 países, entre eles, França, Holanda, Alemanha, México, Colômbia, Índia, África do Sul e Estados Unidos, independentemente de haver escassez ou abundância, além de diferentes razões para instituir a taxa, incluído recuperação de custos, redistribuição de renda, melhoria na alocação e estímulo á conservação.

Quanto a isso, o presidente da ANA, Jerson Kelman, observa que a cobrança só deve ser aplicada em bacias hidrográficas em que o conflito pelo uso ou degradação ambiental já sejam problemas reais ou estejam prestes a eclodir. Esta medida, acrescenta, parte de entendimento de que o suporte da administração dos recursos hídricos só deve ser implementado quando o custo da instalação e de operação dos novos processos e instituições for inferior ao benefício da sociedade com a implantação do novo sistema. Observa, ainda, que idealmente, o usuário deverá racionalizar o uso, diminuindo ou mesmo eliminando a cobrança que lhe é destinada. Ou seja, trata-se de um modelo cujo sucesso resulta na diminuição da arrecadação.

Um dos instrumentos que ajudam a viabilizar o cadastro dos usuários é a outorga. Em São Paulo, é concebida, a pedido, pelo DAEE – Departamento de águas e Energia Elétrica. É uma espécie de autorização que garante o direito de uso e sua concessão implica prévia verificação sobre a existência de água em volume suficiente, levando em conta os aspectos quantitativos e qualitativos para que a solicitação seja atendida. Ao ser expedido, o documento protege o usuário contra o predador de outras pessoas não autorizadas. Em caso de escassez, seja para captação, seja para diluição de efluentes, assegurar a utilização da água e os investimentos daqueles que seguiram o procedimento legal. A outorga visa, em linhas gerais, garantir uma utilização racional dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos, com aproveitamento múltiplo.

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